(...)
Carlos Eduardo abriu um editor de texto, colou ali o conteúdo de um
e-book d’A Divina Comédia e salvou o arquivo como midi.
Não era tão simples assim, mas dava pra fazer. Cada caractere tem
um valor (0-255) que na verdade são oito zeros ou uns. A música tem
especificações diferentes, mas, no fim, também é feita de grupos
de oito zeros ou uns. Alguns ajustes, um conversor que ele mesmo
programou e no minuto seguinte ele já poderia ouvir Dante.
Antes, ele aumentou a luminosidade do quarto até não enxergar mais
nada além do mar branco de suas pálpebras, e então, tateando,
apertou a barra de espaço do computador para reproduzir o som.
Conforme ele se reclinava na cadeira, um chiado começou.
Carlos Eduardo era só mais uma evidência de que as pessoas se
adaptam. Quando você tenta reproduzir um som repetitivo e se cegar
ao mesmo tempo, o sistema operacional percebe. Ele não deixa.
Se você programa um sistema operacional próprio, você não vai
conseguir ligá-lo na rede sem que alguém fique sabendo e faça
alguma coisa, e não importa o que você faça, você sempre está
conectado à rede.
O bloqueio do sistema e do tocador não demora mais do que alguns
segundos, mas em um mundo sem outros tipos de entorpecentes, alguns
segundos são o suficiente.
Funciona assim: 20% se devem à luz forte e ao chiado privando-lhe de
dois sentidos. O resto é basicamente placebo.
Quando a música parou, ele abriu os olhos. A luz também havia sido
baixada e o computador já reiniciava no SO padrão, mas ele ainda
estava deitado e via coisas piscando no teto. De repente, as coisas
piscando se transformaram no rosto gordo de um cliente pedindo que
ele configurasse um programa de envio de SPAM para rodar integrado
aos equipamentos dos funcionários, o que era um trabalho que lhe
tomaria no máximo cinco minutos e que renderia algum dinheiro, mas
ele demorou para responder, enquanto brincava com a imagem da
videoconferência, arrastando-a do teto para as paredes, das paredes
para o chão, do chão de volta para o teto. Pode deixar, ele disse,
e o rosto se apagou.
O quarto de repente ficou preto, todas as paredes virando terminais
negros cobertos com letras brancas, e foi só então que Carlos
Eduardo se levantou. Só assim é que ele se sentia em casa.
Existem vantagens em trabalhar diretamente na máquina dos clientes.
Existem permissões. Normalmente, algumas linhas de código são
inutilizadas já no compilador, mas quando se mexe com sistemas
internos de determinadas empresas, a coisa é relativizada. Ele
passou as mãos pela parede à sua frente, embaralhando com seu toque
as letras ali projetadas. Mexendo rapidamente os dedos, diretamente
na tela, ele começou a digitar comandos, brincar com números,
anotar variáveis. Ele queria que a Comédia ainda estivesse tocando.
O sistema é assim: o usuário sempre está rodando um software. O
software dita os limites do que ele pode fazer. O software foi
programado por alguém. O programador rodou um compilador. O
compilador dita os limites do programador. E então, existe o cara
que programou o compilador, em linguagem de máquina. Por alguns
instantes, Carlos Eduardo é esse cara. E é tão bom quando isso
ocorre depois de uma sessão da Divina.
Há dez anos, ele trabalha com coisas assim, e ele é bom no que faz.
As maiores empresas pagam para que ele programe seus computadores, e
ele consegue configurar um sistema complexo em não mais que meia
hora. Trabalhos de meia hora, feitos por nove horas diárias, ao
longo de dez anos, é bastante serviço. É o suficiente.
Quando o sistema é posto novamente no ar, um programa externo faz a
leitura de tudo o que foi alterado. Se houver qualquer falha de
código ou de segurança, esse programa deverá corrigi-la
imediatamente. O programa-revisor é coordenado e atualizado por uma
das maiores empresas de segurança, a Velotech. A Velotech trabalha
sempre com funcionários qualificados na atualização de seus
programas. Nos últimos três anos, Carlos Eduardo fez 60% desses
serviços.
(...)
Véi, cê escreve bem.
ResponderExcluirantagonista
ResponderExcluirmaldito lazy node.
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