20130628

Vai que ajuda?


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Carlos Eduardo abriu um editor de texto, colou ali o conteúdo de um e-book d’A Divina Comédia e salvou o arquivo como midi.
Não era tão simples assim, mas dava pra fazer. Cada caractere tem um valor (0-255) que na verdade são oito zeros ou uns. A música tem especificações diferentes, mas, no fim, também é feita de grupos de oito zeros ou uns. Alguns ajustes, um conversor que ele mesmo programou e no minuto seguinte ele já poderia ouvir Dante.
Antes, ele aumentou a luminosidade do quarto até não enxergar mais nada além do mar branco de suas pálpebras, e então, tateando, apertou a barra de espaço do computador para reproduzir o som. Conforme ele se reclinava na cadeira, um chiado começou.
Carlos Eduardo era só mais uma evidência de que as pessoas se adaptam. Quando você tenta reproduzir um som repetitivo e se cegar ao mesmo tempo, o sistema operacional percebe. Ele não deixa.
Se você programa um sistema operacional próprio, você não vai conseguir ligá-lo na rede sem que alguém fique sabendo e faça alguma coisa, e não importa o que você faça, você sempre está conectado à rede.
O bloqueio do sistema e do tocador não demora mais do que alguns segundos, mas em um mundo sem outros tipos de entorpecentes, alguns segundos são o suficiente.
Funciona assim: 20% se devem à luz forte e ao chiado privando-lhe de dois sentidos. O resto é basicamente placebo.
Quando a música parou, ele abriu os olhos. A luz também havia sido baixada e o computador já reiniciava no SO padrão, mas ele ainda estava deitado e via coisas piscando no teto. De repente, as coisas piscando se transformaram no rosto gordo de um cliente pedindo que ele configurasse um programa de envio de SPAM para rodar integrado aos equipamentos dos funcionários, o que era um trabalho que lhe tomaria no máximo cinco minutos e que renderia algum dinheiro, mas ele demorou para responder, enquanto brincava com a imagem da videoconferência, arrastando-a do teto para as paredes, das paredes para o chão, do chão de volta para o teto. Pode deixar, ele disse, e o rosto se apagou.
O quarto de repente ficou preto, todas as paredes virando terminais negros cobertos com letras brancas, e foi só então que Carlos Eduardo se levantou. Só assim é que ele se sentia em casa.
Existem vantagens em trabalhar diretamente na máquina dos clientes. Existem permissões. Normalmente, algumas linhas de código são inutilizadas já no compilador, mas quando se mexe com sistemas internos de determinadas empresas, a coisa é relativizada. Ele passou as mãos pela parede à sua frente, embaralhando com seu toque as letras ali projetadas. Mexendo rapidamente os dedos, diretamente na tela, ele começou a digitar comandos, brincar com números, anotar variáveis. Ele queria que a Comédia ainda estivesse tocando.
O sistema é assim: o usuário sempre está rodando um software. O software dita os limites do que ele pode fazer. O software foi programado por alguém. O programador rodou um compilador. O compilador dita os limites do programador. E então, existe o cara que programou o compilador, em linguagem de máquina. Por alguns instantes, Carlos Eduardo é esse cara. E é tão bom quando isso ocorre depois de uma sessão da Divina.
Há dez anos, ele trabalha com coisas assim, e ele é bom no que faz. As maiores empresas pagam para que ele programe seus computadores, e ele consegue configurar um sistema complexo em não mais que meia hora. Trabalhos de meia hora, feitos por nove horas diárias, ao longo de dez anos, é bastante serviço. É o suficiente.
Quando o sistema é posto novamente no ar, um programa externo faz a leitura de tudo o que foi alterado. Se houver qualquer falha de código ou de segurança, esse programa deverá corrigi-la imediatamente. O programa-revisor é coordenado e atualizado por uma das maiores empresas de segurança, a Velotech. A Velotech trabalha sempre com funcionários qualificados na atualização de seus programas. Nos últimos três anos, Carlos Eduardo fez 60% desses serviços.
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