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20120822

carolina

carolina é bilheteira do cine américa, um cinema pornô que fica na avenida rio branco

tem vinte e um anos e é evangélica

vende os ingressos de cabeça baixa, não olha na cara de ninguém

pergunto que filme está passando, só pra provocar

ela aponta um cartaz na parede, levando ferro na caixinha oval

pergunto como está seu pai, bem

o velho teve um derrame, ficou com metade do corpo paralisado, a família pensa que ela é auxiliar de escritório

se o pai soubesse a verdade, paralisava o outro lado

fica a tarde toda na bilheteria, frequenta o templo no Jardim Ângela, onde mora

pergunto se hoje à noite vai ter culto, quase diz que sim, para e pensa, diz que não

quando o pai ficou inválido ela decidiu trabalhar pra ajudar a família

veio pro centro da cidade achando que teria mais oportunidades

PRECISA-SE DE VENDEDOR(A)

nenhuma loja deu emprego

rabo de cabelo até a bunda, saia até o calcanhar, deixou a bíblia em casa pra facilitar, mas não teve jeito

digo a ela que estarei esperando no habbib’s da avenida ipiranga, na hora de sempre

PEGAMOS BILHETEIRO(A)

ela passou direto, parou, continuou a andar, voltou, desistiu na porta do cinema, foi embora, parou, voltou e entrou

o gerente perguntou, tem certeza de que quer o emprego?

quase disse que sim, por pouco não disse que não, já ia dizendo mais ou menos, afirmou quase gritando que sim

chego ao cinema, estranho aquela figura atrás do vidro, mas não digo nada

compro meu ingresso e entro

encontro adele, um dos travestis que trabalham no cinema, pergunto da garota no guichê

é crente, chega, não fala com ninguém, trabalha e se manda

quando vou perguntar o nome da garota, um cliente se aproxima de adele e os dois vão pro banheiro

vejo um pouco do filme, resolvo ir até a bilheteria

tento puxar conversa, vai chover, silêncio, tá esfriando, cabeça baixa, como você se chama?

canto um pouco da música carolina do chico, ela sorri

no dia seguinte vou mais fundo, pergunto da família, da religião, respostas curtas

tem namorado? silêncio, cabeça baixa, não

quantos anos?

depois de uma semana fazendo visitas diárias ela já está confiando um pouco em mim

convido pra comer umas esfíhas no habbib’s depois do expediente, diz que não pode, que não quer, que não é permitido e que eu não a procure mais, depois aceita

o garçom se aproxima com o cardápio, digo que estou aguardando uma pessoa

passa muito da hora que ela costuma sair da bilheteria, o que será que está acontecendo?

faz um mês que jantamos juntos, dois ou três dias por semana, nos outros dias ela vai pro culto

só conversamos, até agora

hoje a convidarei pra ir até meu apartamento

mas ela está demorando muito

deve ter acontecido alguma coisa

vou até o cine américa, o bilheteiro da noite já está no seu lugar

o celular dela cai direto na caixa postal

peço pra falar com seu antônio, o gerente do cinema, pergunto por carolina

ele me olha com sua tradicional cara de bunda

diz que ela pediu demissão.

20120815

Os poderes de Grayskull

– Você tá gostando, amor?

– O quê? Fala mais alto! Essa merda de música tá me deixando surdo.

– Perguntei se você tá curtindo a festa.

– Curtindo? Eu odeio carnaval! Acho que já engoli meio quilo de confete.

– É só fechar a boca que não entra mosca nem confete. Além do mais, ninguém te obrigou a vir.

– Eu é que não ia deixar você vir sozinha.

– Sozinha, não. Todas as minhas amigas da faculdade estão aqui.

– E todos os amigos, também. Aliás, eles devem tá se deliciando com essa tua fantasia de colegial.

– Mas o que você queria? Que eu viesse naquela fantasia de freira que você me comprou?

– Fantasia que, por sinal, me custou uma nota.

– Então por que não trocou por uma de padre pra você?

– Pra morrer nesse puta calor?

– Ah! Eu que me fodesse num hábito de freira enquanto você fica aí, na maior folga, vestido de havaiano?

– E por que você não veio de havaiana, também?

– Tenha dó! Eu vou continuar sambando com as minhas amigas. Você vai ficar aí, sentado?

– Vou ficar aqui vendo você se exibir pro He-Man.

– O quê?

– Pensa que eu não te vi no maior papo com o He-Man agora há pouco?

– O cara é meu colega de faculdade.

– Mas tá louco pra te mostrar a Espada Justiceira.

– A Espada Justiceira não é do He-Man. É dos Thunder Cats.

– Isso! Mostra pra todo mundo que eu não conheço os desenhos da tua infância. Grita que o teu marido é do tempo do Nacional Kid.

– Para de besteira!

– Besteira, nada. Parece que você sente prazer quando deixa bem claro que tem um marido vinte anos mais velho.

– E sinto mesmo. Por que eu deveria ter vergonha do homem que eu amo? Eu não troco meu maridão de quarenta e cinco por nenhum moleque dessa festa.

– Então porque você tava tão empolgada com o He-Man?

– Ai, meu Deus... Vai dizer que você não percebeu?

– Não percebi o quê?

– O He-Man tá mais pra She-Ha. O cara é gay!

– E daí? Gay também tem pau.

– Puta que pariu! Ciúme de gay já é demais.

– Tá bom, desculpa. Olha... Eu quero ir embora. Esses malditos sambas enredos tão me matando.

– Pode ir. Eu vou pegar outra cerveja e continuar sambando.

– Não, espera... Eu preciso de você. Vamos sentar um pouco no jardim, longe dessa barulheira toda.

– Então me ajuda a atravessar o salão porque eu tô muito bêbada.

– Quantas cervejas você tomou?

– Duas latinhas.

– Não é muito.

– E três caipirinhas.

– Porra! E eu achando que era refrigerante que você bebia naqueles copos.

– Se você tivesse perto de mim, ia saber o que eu tava bebendo. Mas você ficou longe o tempo todo.

– Cuidado que o chão tá escorregando aqui.

– Eu queria tanto te apresentar pros meus amigos. Mas você fica se escondendo, me vigiando como se fosse um detetive.

– Ali tem um banco vazio.

– Ainda dá pra ouvir a música daqui.

– Mas pelo menos não tá explodindo nos meus ouvidos. Lá dentro tava muito alto.

– Tava nada. Você que é cheio das viadagens.

– Viado é seu amigo He-Man.

– Mas bem que você deixou ele chupar seu pau no banheiro.

– O quê!?

– Ele não sabe que você é meu marido e me contou tudo.

– Tudo o quê?

– Que chupou um havaiano no banheiro.

– Tem muitos havaianos nessa festa.

– Mas você deve ser o único com uma tatuagem do Nacional Kid na virilha.

– De onde saiu essa bicha? Eu te vigiei um tempão e não vi esse fulano no teu grupo em nenhum momento.

– Ele tinha acabado de chegar na festa quando foi pro banheiro. Eu imagino a sua cara quando viu a gente conversando.

– Olha, eu posso explicar tudo.

– Não precisa explicar nada. É carnaval, todo mundo tá bêbado. É possível perdoar uma pequena traição.

– Mas não foi uma traição!

– Trepar com outra pessoa não é traição?

– Eu não trepei! Foi só um boquete. Sexo oral não é sexo.

– Quem disse isso?

– Bill Clinton, presidente dos Estados Unidos.

– Ex-presidente!!!! Escuta, vamos parar de falar nisso. Eu te amo e não vai ser um boquete que vai atrapalhar nossa vida.

– Espera um pouco. Se você tá aceitando tudo com essa calma é porque alguma coisa você aprontou.

– Aprontei o quê?

– Você trepou com alguém nessa festa?

– Nessa festa, não!

– Como assim nessa festa, não!? Você trepou com outra pessoa depois que a gente se casou?

– Deixa eu pensar.

– Como assim deixa eu pensar!? Você já me traiu?

– Só uma vez.

– O quê? Você me traiu com quem!?

– Com o He-Man.

– Porra! Mas aquela Fanta não é uva!?

– Sim, mas... Aconteceu logo que a gente entrou na faculdade. Ele ainda era virgem e tinha dúvida se era gay ou não.

– E você, amiga pra todas as horas, transou com ele pra tirar a dúvida.

– Isso.

– Ah, meu caralho! Agora só falta você me dizer que gozou.

– Gozei.

– Puta merda! Comigo você não goza, mas com um viado...

– Eu quero ir embora.

– Ele te procurou outras vezes?

– Não. A crise passou e ele assumiu que é gay.

– Que maravilha! Primeiro te come e depois decide que é bicha.

– Será que dá pra gente ir embora?

– Ah! Você não quer continuar sambando!? Que tal dar uma gozadinha com seu colega de faculdade antes de ir?

– Para com isso!

– Parar por quê? Não tá aguentando o tranco? Você acha que pra mim tá sendo fácil escutar essas coisas!?

– Acho que não. Fácil mesmo é saber que o marido da gente deixa qualquer um chupar o pau dele no banheiro.

– Você gosta desse cara?

– Eu não quero mais discutir. Vamos embora?

– Vamos. Mas antes você vai falar com o He-Man.

– Falar o quê?

– Pergunta se ele topa uma ménage à trois.

20120810

Loucura de amor

1.

Aprendi a ler e escrever ainda na pré-escola. Minha primeira história foi pra Tatiana, uma garotinha do colégio. Tínhamos sete ou oito anos. Num reino distante eu era o rei, ela a rainha. Ganhei um beijo na bochecha. Desse dia em diante não parei mais de escrever. Algo dizia que eu me daria bem com a literatura e com as mulheres.

Me enganei nos dois casos.

2.

Depois da aula, Tatiana e eu brincávamos de papai e mamãe no quarto dela. Fazíamos tudo às pressas (comida, limpeza, pagamento de contas) para chegarmos logo ao beijo de boa noite. Era quando as bocas ansiavam pelo toque, os corações disparavam com medo de que alguém entrasse no quarto justo naquele momento. Os lábios se procuravam lentamente, mas quando se encontravam o recuo era tão rápido que às vezes doía o pescoço. Depois a gente se deitava e fingia dormir. Então eu logo dizia: é hora de acordar. E ela: vou dar mamadeira pro bebê.

E tudo recomeçava.

3.

Um dia Tatiana peidou na sala de aula. Todos ouviram. O cheiro se espalhou. Risos gerais. Nossas mesas coladinhas. Ela vermelha que nem pimentão. Levantei a voz e disse com firmeza: fui eu!

Essa foi minha primeira loucura de amor.