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20121219
20091116
É da vida, é da vida...
Ontem, enquanto dois pernilongos me picavam, pude ouvir a conversa deles: o primeiro começou falando sobre mim mesmo, que no momento era o assunto óbvio. Mas com a mesma rapidez com que me considerou “degustável” o segundo passou às questões mais práticas, em torno de como alcançar meu antebraço direito (estavam no esquerdo).
Eu quis me intrometer, porque fui com a cara dos dois, e sugeri um novo tema. Em troca, tive que oferecer o braço que cobiçavam, mas não vi grandes problemas. Sendo assim, pude contemplar um dos melhores diálogos sobre sinestesia que já ouvi. A definição do primeiro era bem pouco ortodoxa: o mesmo que um músico de formação erudita tentando tocar jazz. O outro foi mais simplório e a definiu como um truque racional que visa à sensação ébria de um copo de sangue pelo ouvido.
E falando em ouvido, foi aí que eles se aproximaram e eu comecei a me incomodar com o zumbido insuportável, que se sobrepunha às vozes singelas dos dois – que nada tinham de esganadas, é importante dizer, e se pareciam mais com uma versão aveludada de Mariana Ximenes. Bem, logo dei cabo dos dois e entrei no banho.
Mas a verdade é que só imaginei ter dado cabo dos dois. O segundo, de quem eu gostava menos, havia conseguido escapar e, sem guardar mágoas, acompanhou-me no banho. Parecia suportar bastante bem uma gota ou outra de água que ocasionalmente escorriam sobre sua cabeça.
Engatamos um papo e desenvolvemos a temática “afrescos”, sugerida pelo acúmulo de gotículas na janelinha do banheiro, que o fizeram lembrar-se de algumas obras de arte decorativa que vira uma vez em Porto Alegre. Minha esposa juntou-se a nós (a mim, consciente; a nós, sem dar-se conta de meu amigo) e, bem, tive que interromper a conversa por alguns instantes para começar outra:
-O lençol está com uma manchinha de sangue...machucou?
-Eu? Bom, eu não me machuquei...
Falar sobre meu homicídio dessa maneira me constrangia e eu tentei rapidamente mudar de assunto. Minha mulher é burra, de modo que pude logo inventar um jogo, que consistia em tentar lembrar se a sessão das quinze e dez era no multiplex ou no shopping. Valha-me deus, como funcionou.
Saímos juntos do banho e eu me distraí por uns instantes – sendo preciso, exatamente quando me secava e colocava a toalha de volta, pendurada -, o que foi suficiente para que perdesse meu novo amigo de vista. Isso me deu tempo para pensar numa próxima temática. Coloquei minha roupa pensativo, riscando idéias ruins que apareciam e fazendo pré-seleções das razoáveis.
Enquanto isso, minha mulher já se vestira e, com pressa, dava-me um beijo de “até mais tarde”.
Olhei em volta e não o encontrei. Peguei o jornal e comecei a ler. Ando de saco cheio dos cadernos culturais e dos editoriais. Sobre estes últimos, me incomoda o jeito com que tratam todos como se fossem ignorantes, ou melhor, ao menos soubessem menos do que aquele que escreve. É uma arrogância. Meu sindicato ontem fez dez anos e a cobertura foi pífia. Disseram que somos “uma máfia”. Bem, na verdade, eu não sou do sindicato, só fui o membro fundador, mas logo me retirei quando caí no, digamos, “show business”. De todo modo, é terrível imaginar como eu estaria constrangido hoje se lesse o tal artigo. Sobre os cadernos culturais...vou me abster. São quase como enemas pré-preparados, de tão desgostosos.
Mas não tive mais tempo na vida para nada disso. Enquanto folheava, não vi a quina da estante de livros, bati a cabeça com força descomunal e caí, já moribundo. Eu sangrava muito na testa e senti que o ferro enferrujado tinha cravado fundo. Dificilmente sobreviveria. Vi o sangue se acumulando na minha frente. Aí ouvi o zumbido – que logo cessou, gentilmente – e vi meu amigo me olhando. Não impedi que se servisse de meu sangue espalhado. Nem fiz qualquer movimento que encerrasse o monólogo:
-Pois é, mas pior do que esses afrescos mal feitos é sangue de gato, que é azedo. Você me falou sobre como prefere aquarela. Pois bem, mas guache é mais grossa e menos divertida. Borrifadores são mais caros, é verdade, mas prefiro do que uma tinta que você pode comprar em qualquer lugar e é só começar a jogar numa tela que fica tudo bem. Agora, soube de um colega que conseguiu ler dois livros em um dia só, e livros grandes. Outro teve que fazer uma limpeza intestinal, em casa mesmo, mas porque comeu muito enquanto lia, ficou lá sentado e nem percebeu o que aconteceu, enfim, quase explodiu! Aliás, foi o meu colega que foi-se lá no seu quarto, sabe?, mas sem mágoas, acontece, é assim mesmo. Vou compor uma música sobre isso. Prefiro acordes aumentados, que dão mais tensão...hô, hô, entende?, “tensão”, nos dois sentidos, musical e dramático, sabe? Pois é, mas aqui já começa a coagular, e eu não gosto.
Eu quis me intrometer, porque fui com a cara dos dois, e sugeri um novo tema. Em troca, tive que oferecer o braço que cobiçavam, mas não vi grandes problemas. Sendo assim, pude contemplar um dos melhores diálogos sobre sinestesia que já ouvi. A definição do primeiro era bem pouco ortodoxa: o mesmo que um músico de formação erudita tentando tocar jazz. O outro foi mais simplório e a definiu como um truque racional que visa à sensação ébria de um copo de sangue pelo ouvido.
E falando em ouvido, foi aí que eles se aproximaram e eu comecei a me incomodar com o zumbido insuportável, que se sobrepunha às vozes singelas dos dois – que nada tinham de esganadas, é importante dizer, e se pareciam mais com uma versão aveludada de Mariana Ximenes. Bem, logo dei cabo dos dois e entrei no banho.
Mas a verdade é que só imaginei ter dado cabo dos dois. O segundo, de quem eu gostava menos, havia conseguido escapar e, sem guardar mágoas, acompanhou-me no banho. Parecia suportar bastante bem uma gota ou outra de água que ocasionalmente escorriam sobre sua cabeça.
Engatamos um papo e desenvolvemos a temática “afrescos”, sugerida pelo acúmulo de gotículas na janelinha do banheiro, que o fizeram lembrar-se de algumas obras de arte decorativa que vira uma vez em Porto Alegre. Minha esposa juntou-se a nós (a mim, consciente; a nós, sem dar-se conta de meu amigo) e, bem, tive que interromper a conversa por alguns instantes para começar outra:
-O lençol está com uma manchinha de sangue...machucou?
-Eu? Bom, eu não me machuquei...
Falar sobre meu homicídio dessa maneira me constrangia e eu tentei rapidamente mudar de assunto. Minha mulher é burra, de modo que pude logo inventar um jogo, que consistia em tentar lembrar se a sessão das quinze e dez era no multiplex ou no shopping. Valha-me deus, como funcionou.
Saímos juntos do banho e eu me distraí por uns instantes – sendo preciso, exatamente quando me secava e colocava a toalha de volta, pendurada -, o que foi suficiente para que perdesse meu novo amigo de vista. Isso me deu tempo para pensar numa próxima temática. Coloquei minha roupa pensativo, riscando idéias ruins que apareciam e fazendo pré-seleções das razoáveis.
Enquanto isso, minha mulher já se vestira e, com pressa, dava-me um beijo de “até mais tarde”.
Olhei em volta e não o encontrei. Peguei o jornal e comecei a ler. Ando de saco cheio dos cadernos culturais e dos editoriais. Sobre estes últimos, me incomoda o jeito com que tratam todos como se fossem ignorantes, ou melhor, ao menos soubessem menos do que aquele que escreve. É uma arrogância. Meu sindicato ontem fez dez anos e a cobertura foi pífia. Disseram que somos “uma máfia”. Bem, na verdade, eu não sou do sindicato, só fui o membro fundador, mas logo me retirei quando caí no, digamos, “show business”. De todo modo, é terrível imaginar como eu estaria constrangido hoje se lesse o tal artigo. Sobre os cadernos culturais...vou me abster. São quase como enemas pré-preparados, de tão desgostosos.
Mas não tive mais tempo na vida para nada disso. Enquanto folheava, não vi a quina da estante de livros, bati a cabeça com força descomunal e caí, já moribundo. Eu sangrava muito na testa e senti que o ferro enferrujado tinha cravado fundo. Dificilmente sobreviveria. Vi o sangue se acumulando na minha frente. Aí ouvi o zumbido – que logo cessou, gentilmente – e vi meu amigo me olhando. Não impedi que se servisse de meu sangue espalhado. Nem fiz qualquer movimento que encerrasse o monólogo:
-Pois é, mas pior do que esses afrescos mal feitos é sangue de gato, que é azedo. Você me falou sobre como prefere aquarela. Pois bem, mas guache é mais grossa e menos divertida. Borrifadores são mais caros, é verdade, mas prefiro do que uma tinta que você pode comprar em qualquer lugar e é só começar a jogar numa tela que fica tudo bem. Agora, soube de um colega que conseguiu ler dois livros em um dia só, e livros grandes. Outro teve que fazer uma limpeza intestinal, em casa mesmo, mas porque comeu muito enquanto lia, ficou lá sentado e nem percebeu o que aconteceu, enfim, quase explodiu! Aliás, foi o meu colega que foi-se lá no seu quarto, sabe?, mas sem mágoas, acontece, é assim mesmo. Vou compor uma música sobre isso. Prefiro acordes aumentados, que dão mais tensão...hô, hô, entende?, “tensão”, nos dois sentidos, musical e dramático, sabe? Pois é, mas aqui já começa a coagular, e eu não gosto.
20090215
Instruções para jogar robato (versão espanhola, com 67 cartas)
Bom mesmo é jogar robato. O ponto-cruz mais forte geralmente é o de paus, mas isso não é regra; talvez seja regra cósmica, porque o que define o mais forte é o desenrolar das trenentinas do jogo e, se em grande parte das vezes, elas indicam o naipe dos brotinhos, o crupiê não deve ser culpado.
No entanto, um mal embaralhador inevitavelmente esbarra na intrincada questão dos valetes vermelhos. Se for de copas, pode condenar todo o jogo à ruína, mesmo antes do começo. É só ele aparecer entre quaisquer números ímpares que tudo com certeza travará, mais cedo ou mais tarde – e aí não há ponto-cruz de paus que salve.
“É complicado”, ouvi um crupiê dizer uma vez, “Requer muito de seus dedões.” É muito mais mecânico do que qualquer outra coisa. A sorte conta, claro, mas está longe de ser o principal fator determinante.
Imaginando uma situação: jogador 1 escolhe que a primeira trenentina será a “perenne”. Logo, a segunda deverá ser “ronã-lima”. A terceira, “nunimar”, e assim por diante até a nona, “ulapa”. Como a ordem não muda, somente os números (se o jogador 1 tivesse escolhido que a primeira seria “ronã-lima”, a segunda seria “nunimar”, etc., etc.), o crupiê está nas mãos do primeiro a jogar. Quanto mais próximo da nona limpa, ou seja, a nona trenentina original – estabelecida em 1887 por Henry J. Robato, divulgador e suposto criador do jogo – mais difícil para quem dá as cartas, porque dadas as multiplicações possíveis das cartas em jogo pela diferença de trenentinas entre a original e a escolhida pelo jogador, isto é, total x (T. original – T. escolhida), as chances de números ímpares tornam-se cada vez menores quanto mais próximas forem T. original e T. escolhida.
Apesar da aparente complexidade, a prática de robato sempre me caiu muito bem, em especial quando acompanhada de petiscos. Os petiscos, por sua vez, podem também exercer alguma influência: dê bolinhas-de-amendoim gordurosas ao crupiê e veja qualquer habilidade nos dedões escapar como mágica.
Resta então a última dica para os futuros robatingos: nunca desconfiar e sempre ajudar seus adversários. O ponto-cruz beneficia a todos, não importando as circunstâncias do jogo(Diz-se, aliás, que a nomenclatura escolhida foi amplamente influenciada pela fervorosa pregação pentecostal de Henry J. Robato. “Jesus and us, no need for fuss”“ era seu lema.) Dessa forma, a ajuda pode ser prejudicial a seus adversários, sendo essencial mostrar-se altruísta sempre que possível. Como as ajudas não podem ser impedidas – a menos que se tenha um coringa – um ponto-cruz formado mutuamente pode virar completamente o jogo e dar a vitória àquele que não chegara nem perto da primeira trenentina.
Regras na cabeça, cartas na mão, resta-nos o caramanchão.
No entanto, um mal embaralhador inevitavelmente esbarra na intrincada questão dos valetes vermelhos. Se for de copas, pode condenar todo o jogo à ruína, mesmo antes do começo. É só ele aparecer entre quaisquer números ímpares que tudo com certeza travará, mais cedo ou mais tarde – e aí não há ponto-cruz de paus que salve.
“É complicado”, ouvi um crupiê dizer uma vez, “Requer muito de seus dedões.” É muito mais mecânico do que qualquer outra coisa. A sorte conta, claro, mas está longe de ser o principal fator determinante.
Imaginando uma situação: jogador 1 escolhe que a primeira trenentina será a “perenne”. Logo, a segunda deverá ser “ronã-lima”. A terceira, “nunimar”, e assim por diante até a nona, “ulapa”. Como a ordem não muda, somente os números (se o jogador 1 tivesse escolhido que a primeira seria “ronã-lima”, a segunda seria “nunimar”, etc., etc.), o crupiê está nas mãos do primeiro a jogar. Quanto mais próximo da nona limpa, ou seja, a nona trenentina original – estabelecida em 1887 por Henry J. Robato, divulgador e suposto criador do jogo – mais difícil para quem dá as cartas, porque dadas as multiplicações possíveis das cartas em jogo pela diferença de trenentinas entre a original e a escolhida pelo jogador, isto é, total x (T. original – T. escolhida), as chances de números ímpares tornam-se cada vez menores quanto mais próximas forem T. original e T. escolhida.
Apesar da aparente complexidade, a prática de robato sempre me caiu muito bem, em especial quando acompanhada de petiscos. Os petiscos, por sua vez, podem também exercer alguma influência: dê bolinhas-de-amendoim gordurosas ao crupiê e veja qualquer habilidade nos dedões escapar como mágica.
Resta então a última dica para os futuros robatingos: nunca desconfiar e sempre ajudar seus adversários. O ponto-cruz beneficia a todos, não importando as circunstâncias do jogo(Diz-se, aliás, que a nomenclatura escolhida foi amplamente influenciada pela fervorosa pregação pentecostal de Henry J. Robato. “Jesus and us, no need for fuss”“ era seu lema.) Dessa forma, a ajuda pode ser prejudicial a seus adversários, sendo essencial mostrar-se altruísta sempre que possível. Como as ajudas não podem ser impedidas – a menos que se tenha um coringa – um ponto-cruz formado mutuamente pode virar completamente o jogo e dar a vitória àquele que não chegara nem perto da primeira trenentina.
Regras na cabeça, cartas na mão, resta-nos o caramanchão.
isto é:
agulhas,
baralho,
crochê,
edir macedo,
jesus,
robalo,
robato,
Swordfishtrombone,
universal
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