20111223

Gabriel queria escrever um romance. Ele já havia escrito outras coisas antes, é claro: historinhas, na denominação utilizada pelos parentes mais próximos e por aqueles que possuíam qualquer dosagem de senso crítico; agora, porém, queria escrever um romance.
O procedimento é relativamente simples, ao menos no que diz respeito ao seu aspecto, digamos, braçal: adquire-se o equipamento necessário, que pode ser uma agenda telefônica e caneta ou uma área suficientemente grande de areia na praia e um pedaço de pau (no caso, optou-se por um computador), dedica-se uma quantidade suficiente de tempo e procede-se com a técnica repetitiva e mecânica de desenhar letras ou pressionar teclas. É isto o que fazem aqueles que escrevem romances e, ao fazê-lo, Gabriel não poderia ser diferenciado de nenhum de seus grandes heróis da Literatura com L maiúsculo.
No entanto, findas algumas horas e diante da página quase completamente vazia, Gabriel percebeu que a tarefa era muito menos simples do que inicialmente se lhe havia apresentado. Dispondo ainda do tempo que havia reservado em seu cronograma e no intento de atiçar a criatividade, nosso intrépido herói deu uma rápida olhada ao redor, à procura de qualquer objeto que lhe servisse de inspiração.
Ao seu lado, encostado à parede e coberto de poeira, estava o antigo violão. Um violão é um instrumento musical e, portanto, artístico; a música e a literatura são espécies diferentes de um mesmo gênero e, portanto, o empenho a uma certamente renderia seus frutos à outra. Dotado de tal convicção, Gabriel tomou o violão em suas mãos e pôs-se a dedilhar uma das raras melodias que subsistiam em sua memória. Os dedos correram sozinhos pelas cordas, engasgando-se, às vezes, mas demonstrando-se razoavelmente corretos.
Produziram um som odioso.
Gabriel percebeu-se, então, diante de um novo problema: não sabia como afinar o instrumento. Dirigiu os olhos tentados à tela do computador, em cujo canto superior esquerdo reluzia o ícone do navegador Firefox, deixado ali a postos. Um dilema moral nasceu dessa observação: havia imposto a si mesmo a restrição de não desperdiçar seu tempo de escrita na internet, vício dos vícios. No entanto, tocar o violão era, de certa forma, parte do processo de escrita, e aprender como afiná-lo era parte do processo de tocar o violão. Após alguma reflexão, consentiu em liberar-se de sua restrição, desde que fosse exclusivamente com este bom intento.
Após alguma pesquisa, porém, observou outra dificuldade: não lhe bastava simplesmente mimetizar os sons que alguns sites ofereciam, para saber que o violão estava afinado. Era preciso ir a fundo, refletir sobre a natureza das escalas musicais, sobre a razão de ser das variações microtonais etc. Não o fazer seria reduzir seu empenho musical a uma tarefa isenta de raciocínio crítico, o que obviamente contrariava as demandas mais básicas da escrita literária — e afinal, era isso o que ele estava fazendo: escrevendo.
Imergiu-se, assim, no estudo de teoria musical. Evidentemente, um dia não lhe bastou, então os dias se passaram e ele lia com olhos vidrados tudo o que podia encontrar sobre o assunto. Após quatro anos, julgou-se apto a, enfim, afinar o violão, o que de fato fez.
Terminado este primeiro passo, Gabriel pôs-se a tocar, agora com muito mais clareza e convicção e até mesmo a compor. Sempre que lhe ocorria voltar os olhos á página em branco e talvez pressionar uma ou outra tecla, percebia que ainda não estava pronto, de forma que voltava a correr os dedos pelas cordas.
Até que, é claro, aquilo já não lhe bastava. No oitavo ano, saiu de casa apressado e comprou um contrabaixo. Depois, seguiram-lhe um sax, um piano de cauda, uma flauta doce, uma cuíca, uma gaita diatônica etc. No décimo quinto ano, após breve vislumbre do cursor que piscava impaciente na página vazia do Word, Gabriel decidiu que era hora de investir mais seriamente na literatura, motivo pelo qual comprou os mais avançados equipamentos de gravação e edição de som e sintetizou, em seu quarto, mesmo, seu primeiro álbum musical.
O sucesso desse primeiro disco fez com que um segundo fosse lançado, em obra que contou com a feliz participação da Berliner Philharmoniker.
Notando que nem a aclamação popular, nem os inúmeros prêmios, nem os milhões de dólares adicionados à sua conta bancária lhe eram suficientes para a escrita, Gabriel então percebeu que estava se desviando demasiadamente de seu caminho. No vigésimo oitavo ano de produção do romance, ele decidiu que era necessária uma completa reviravolta em sua vida, de forma que foi imediatamente a uma loja próxima e adquiriu acetona, carvão, tinta a óleo e telas. Repetiu os procedimentos de estudo e prática e, no trigésimo terceiro ano, foi destaque tanto no Moma quanto no Tate.
O que, evidentemente, não se deu sem seus contratempos: teve que recusar o convite para participar em uma campanha publicitária de televisores Sony, porque, conforme afirmou em japonês irrepreensível (aprendido como forma de inspiração e ampliação de horizontes linguísticos) ao exasperado representante de marketing da empresa, isso atrasaria o término de seu livro, que, afinal, era seu principal propósito.
Após similares incursões ao teatro, cinema, arquitetura e escultura, Gabriel chegou mesmo a inventar novas modalidades artísticas, utilizando-se de meios e linguagens nunca antes concebidas. Aos oitenta e oito anos, teve um enorme monumento em sua homenagem erguido na plataforma espacial Tiangong e celebrações foram realizadas pelo mundo nas ocasiões de seus aniversários de noventa, noventa e cinco e cem anos.
Quando faleceu, aos cento e quatro anos, uma editora alemã conseguiu os direitos de publicação de seu romance, consistindo em uma capa em que figurava apenas seu nome e três folhas quase completamente em branco, com duas ou três palavras espalhadas de forma aparentemente aleatória em cada uma. Os jornais do mundo todo noticiaram com tristeza a ocorrência e ressaltaram o afinco de seus estudos, seus contínuos esforços nos mais variados campos do saber e, acima de tudo, o empenho irrestrito à literatura.

20111221

Manon dizia



























se você vê assim, então é assim que você vê, não é?
mais uma vodka?
hoje sou a retórica.
mais uma vodka!
não gosto, não.
parece sem nenhuma contorção.
isso é um quadrado –– e ria.
seu bocó.
eu leio cartas, não mãos.





































Na varandinha Manon espiava sem se esconder;
Manon era artista, embalada em baladas,
quase caía sem saber –– manonmanon.

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você ouviu?
estou te vendo daqui.
você ouviu?
fica assim, você está uma belezinha.
você não ouviu.
ouvi, mas estou te olhando.



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20111218


É apagando as pessoas 
que se faz uma gestão limpa,
tão perfeita e singela
que prescinde de qualquer 
carne
ar 
ou fogo.

A presença arruinada
a noite atravessa.


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20111217

Do you know "nhoc"?

i de ironia, david foster wallace (serrote no. 6)

A ironia da arte e da cultura do pós-guerra começou da mesma maneira que a rebelião jovem. Era algo difícil, doloroso, mas produtivo – o soturno diagnóstico de uma doença longamente negada. As premissas por trás daquela primeira ironia pós-moderna, por outro lado, ainda eram francamente idealistas: supunha-se que a etiologia e o diagnóstico apontaseem para a cura, que a exposição do cativeiro conduziria à liberdade.

Então como foi que a ironia, a irreverência e a rebeldia se tornaram debilitantes, em vez de libertadoras, na cultura sobre a qual a vanguarda de hoje tenta escrever? Uma pista pode ser encontrada no fato de que a ironia ainda está aí, maior do que nunca, depois de 30 anos como modo dominante de expressão dos artistas antenados. Não é um recurso retórico que envelheça bem. Como diz Hyde (de quem eu obviamente gosto), "a ironia tem uso apenas emergencial. Estendida no tempo, é a voz do prisioneiro que passou a gostar de sua cela." Isso se deve ao fato de que a ironia, embora prazerosa, tem uma função quase exclusivamente negativa. É crítica e destrutiva, boa para limpar o terreno. Com certeza era assim que nossos pais pós-modernos a viam. Mas é particularmente inútil quando se trata de construir alguma coisa para pôr no lugar das hipocrisias que expõe. Eis por que Hyde parece acertar ao dizer que a ironia renitente é cansativa. Eu acho perversamente divertido ouvir o discurso de ironistas talentosos em festinhas, mas sempre saio dali com a sensação de ter sido submetico a várias intervenções cirúrgicas radicais. Sem falar em atravessar o país de carro ao lado de um ironista talentoso, ou ler um romance de 300 páginas e que não há nada além de sarcasmo espertindo, experiências que nos deixam não apenas vazios, mas, de alguma forma, oprimidos.

Pense, por um momento, nos rebeldes do Terceiro Mundo e seus golpes de Estado. Rebeldes do Terceiro Mundo são ótimos na tarefa de denunciar e pôr abaixo regimes hipócritas e corruptos, mas parecem consideravelmente piores no trabalho mundano e não negativo de estabelecer em seguida uma alternativa superior de governo. Rebeldes vitoriosos, na verdade, parecem se sair melhor quando usam seus talentos de força e cinismo para evitar que outros se rebelem contra eles – em outras palavras, tornam-se apenas tiranos mais competentes.

E não resta dúvida: a ironia nos tiraniza. Nossa difusa ironia cultural é, ao mesmo tempo, tão poderosa e tão frustrante porque é impossível saber com clareza o que quer um ironista. Toda a ironia americana se baseia num argumento implícito: "Na verdade, eu não quero dizer o que estou dizendo". Mas então o que a ironia como norma cultural ˆquerˆdizer? Que é impossível querer dizer o que se diz? Que talvez seja mesmo uma pena ser impossível, mas acorde para a vida e pare de sonhar? Acredito que, no fim das contas, a ironia de hoje está provavelmente dizendo o seguinte: "Que coisa absolutamente banal você me perguntar o que eu quero dizer". Qualquer um que tenha a petulância herética de perguntar a um ironista o que ele na verdade defende acaba por parecer histérico ou careta. Eis o caráter opressivo da ironia institucionalizada, do rebelde bem-sucedido demais: a capacidade de interditar a questão sem se reportar a seu conteúdo é, quando exercida, tirania. Trata-se da nova junta de governo, usando a própria arma que devastou seu inimigo para se encastelar.

20111213

Da poesia que vingou

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Only in Russia is poetry respected — it gets people killed. 
Is there anywhere else where poetry is so common a motive for murder?

Ossip Mandelstam


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20111212

Dos mitos que não vingaram

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Minotauro opera fratura de braço 
nesta segunda-feira



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20111211


a vida frenética
daquilo
que não acaba
de morrer

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20111209

Análise crítica e reflexão sobre o vídeo "Escolinha do Pedagogo Alquiminto"

http://www.youtube.com/watch?v=VtyBlvhOX3A vídeo analisado


A arte política não é apenas panfleto - essa é uma acusação feita pelos seus detratores, e é uma acusação de tanta carga político-ideológica quanto a arte atacada. Fazer arte política não é musicar uma propaganda partidária nem dançar enquanto se recitam as teses de Marx - ao menos não só; a arte política é aquela que reflete e pensa criticamente o seu próprio tempo e produz conteúdo de valor estético-formal que remeta à "realidade" e tome posições diante dela.

Isso posto, deixo claro logo de início que considero louvável a produção de vídeos que se proponham a refletir sobre tudo que tem ocorrido na USP: é necessário que criemos contrapontos à Versão Oficial dos fatos, que expressemos nossos olhares sobre o que aconteceu e nossas exigências. Levando em conta a minha visão (acima expressada) acerca de arte política, considero necessidade básica que os vídeos produzidos não se valham apenas pelo "conteúdo" (se é que isso existe): se vamos criar "objetos artísticos de protesto", é óbvio que a estética segundo a qual eles existem seja tão pensada quanto "o que eles dizem" - ainda mais se tratando de uma peça ficcional, e não uma reportagem ou um ensaio.

Nesse sentido, considero o vídeo problemático em diversos aspectos.

A suposta "paródia" dos programas de tv do tipo "Escolinha do Professor Raimundo" e similares não é, em si só, um problema - a paródia é reconhecida como arma efetiva de crítica e ridicularização de idéias há tempos. A questão aqui é: o que estamos parodiando? Programas como "Escolinha" se baseiam em uma situação supostamente ordeira (aula) que se revela proto-anárquica, com a presença de diversos "tipos" engraçados e a falta de controle do professor sobre os alunos - é, basicamente, humor de personagem e de situação. A paródia realizada não parece compreender isso muito bem, apenas absorvendo o cenário - escola - e o título, sem emular verdadeiramente o "espírito" do programa. Constrói-se uma situação onde o único personagem verdadeiro é o professor (paródia de Geraldo Alckmin? é impossível saber: afora o nome ("Alquiminto"), não há nenhum tipo de estabelecimento de paralelos com o governador, nem com suas idéias, nem mesmo com o seu físico. tudo que vemos é um professor gritalhão e desagradável.), onde os alunos são rostos apagados, máscaras* ou corporificação de idéias básicas. Paradoxalmente, dessa maneira, dá-se muito mais "poder" ao professor do que nos programas parodiados - como só ele fala e tem personalidade definida, é apenas a sua presença que domina o vídeo.

(* abro aqui um parêntese para comentar as máscaras: o que elas significam? colocar os "rostos" de "inimigos" dentro de uma classe apática e aparentemente não alinhada ao professor totalitário não faz muito sentido - teoricamente, datena, rodas e quetais estariam totalmente aliados ao governador e não necessitariam de "aulas de democracia" para se colocarem ao seu lado. além disso, acredito que o rosto de reinaldo azevedo seja bem pouco conhecido e a sua presença lá acaba se tornando uma espécie de "piada interna" pouco interessante - ainda que eu o despreze etc.)

O problema principal que vejo no vídeo é, no entanto, um só: indecisão. Sendo grosseiro, existem duas modalidades possíveis de arte política: radical-revolucionária e reformista-controlada. As duas são válidas e cada uma tem prioridades diferentes: o primeiro modelo pressupõe-se mais objeto artístico do que necessariamente objeto de conscientização - há uma certa "integridade" por trás da obra proposta que não será violada nem "diluída" na tentativa de torná-la mais acessível/palatável a mais gente. Não há absolutamente nada de errado quanto a isso: existem exemplos históricos de arte radical bastante louvável, desde diversas bandas punks que não pretendem buscar consenso até os filmes do casal Straub-Huillet, de teor marxista-materialista inveterado que não se rende a concessões "clássicas" sobre narrativa ou espetáculo. É importante notar, no entanto, que essas obras pautam-se pelo encontro de um conteúdo radical aliado a uma estética tão extrema quanto - uma noção que vem fortalecida desde a arte revolucionária soviética. Cria-se um objeto que não só "diz" revolução mas também "é" revolução.

O segundo modelo, de "conciliação", teria uma preocupação maior com um suposto contato com o público-alvo e a transmissão de idéias de maneira talvez "homeopática" - evita-se a violência das verdades gritadas e procura-se o caminho do convencimento gradual. Nesse caso, adotam-se modelos formais já convencionais e reconhecíveis, numa tentativa de acesso ao público por uma via que ele já conheça - é o caso, por exemplo, de reportagens que emulem os formatos da grande mídia, de documentários como "Uma Verdade Inconveniente", etc. Procuramos mostrar "o nosso lado" de uma maneira que evoque as fabulações já propostas pelo "outro lado".

O que o vídeo analisado parece fazer, para mim, é bambear entre essas duas propostas sem ter certeza do que pretende. No sentido de "conciliação", adota um formato pretensamente reconhecível - a paródia de um programa televisivo familiar a grande parte da sociedade brasileira. No sentido "radical", a retórica adotada é extremamente violenta e cheia de gritos. No sentido de "conciliação", há um momento extremamente didático de explanação de porque certas atitudes seriam anti-democráticas. No sentido "radical", há a reprodução de imagens bastante violentas e perturbadoras (tortura, insinuação sexual forçada, etc). O resultado final acaba sendo esquizofrênico - um vídeo que, do nosso lado, só traz os gritos e o ódio, mas cujo formato é uma emulação precária do pior que o formalismo-conservador tem a oferecer.

Eu não seria contrário a um vídeo que fosse puro ódio - ainda que não saiba exatamente a que "propósito" se prestaria, que não seja o da arte extremamente individualista e pessoal -, caso ele se inspirasse em formas verdadeiramente diferentes e radicais e novas. Eu não seria contrário, também, a um vídeo "proselitista" que emulasse formatos "batidos" na tentativa de comunicar uma idéia que precisa urgentemente ser comunicada. O que me incomoda nesse caso é que o vídeo realizado parece não ter "função" alguma.

Como objeto-artístico-em-si-só, é de realização precária e confusa - a decupagem alterna entre o utilitarismo do plano geral-plano detalhe sem se propôr nem à paródia bem realizada da estética dos programas televisivos (que têm suas especificades), nem a uma tentativa de outra estética nova ou pensada, que fuja um pouco do básico-lavado imposto ao mundo pelas câmeras digitais de alta-definição. Há momentos de pura confusão estética: o interlúdio "bossa-nova", o trecho regado a música erudita (e o aparente regojizo frente às imagens de violência), o final "quebrando a quarta parede" que parece desconexo do resto do filme, etc. As piadas parecem evocar apenas o mais pueril e vulgar e simplista da programação de comédia da tv aberta, numa operação que acaba associando essa vulgaridade às "idéias" que tentamos propagar - quando, no fim, faz-se a piada com "dedo no cu", não estamos sendo quebradores de paradigma nem revolucionários: estamos apenas perpetuando um discurso vulgar, simplista e reacionário quanto a sexo e corpo, agora associado aos "nossos ideais".

Como objeto-político-de-conscientização, é um produto extremamente confuso: assisti o vídeo algumas vezes e ainda tenho dificuldade em compreender o que ele "quer dizer", afora talvez "Não gostamos de Geraldo Alckmin.". Não há nenhum momento real de discussão ou refutação de idéias, de reflexão sobre os acontecimentos ou mesmo de esclarecimento real sobre "qual é a questão": o instante mais "sério", a pergunta do personagem "Pedrinho", perde a maior parte da sua força por ser direcionada a um interlocutor tão obviamente estúpido (a ponto de não representar absolutamente nada) e por ser executada de maneira ultra-didática-professoral que destoa agressivamente do resto do vídeo. A impressão passada pelo conteúdo do vídeo é que nós, alunos da USP, odiamos alguma visão distorcida de Geraldo Alckmin (embora nem saibamos direito o que ele acha ou pensa) e não temos nada a propor ou falar sobre isso. Esse procedimento, aliás, de ridicularizar o interlocutor e atribuir a ele idéias estúpidas para mais fácil refutá-las tem um nome, "Falácia do Espantalho", e é uma das estratégias mais comuns da chamada "mídia golpista" que tentamos criticar (é só pensar na palavra de ordem "Ah, mas que vergonha/achar que a greve é por causa da maconha", que só existe para refutar esse tipo de simplificação sobre o nosso movimento).

Não escrevo isso com o intuito de ridicularizar nem de destruir: proponho apenas uma reflexão sobre o vídeo, suas características e seus objetivos: no meu contato com a obra, a impressão que ficou foi de algo de teor extremamente vulgar, pouco pensado, sem objetivo claro e cujo "efeito" final, caso tenha algum contato com o "público", seria apenas o de associar a nós uma imagem raivosa, pouco construtiva, nada aberta ao diálogo e incapaz de criar um discurso coerente e atrativo.

Gostaria que pensássemos: o que queremos obter com a nossa "produção de greve"? Gostaria que refletíssemos no intuito de criarmos obras que sejam reflexo do que pensamos: que explorem novos formatos, que explorem novas idéias e que procurem, verdadeiramente, um diálogo e uma maneira de expormos O Que Vemos E Pensamos Aqui Na Usp. Não quero uma arte "coxinha" nem "pelega": não acho que devemos apenas emular formatos jornalisticos e nos portarmos como "bons meninos" - isso não seria justo nem interessante. Acredito que seja possível, no entanto, praticarmos uma arte que seja "nossa", genuinamente, e que seja baseada nas nossas preocupações estéticas e políticas sem se render ao ódio fácil e "espontâneo" e pouco pensado.


Guilherme Assis, 09/12/2011

Aluno do Curso Superior do Audiovisual - ECA - USP.

20111207

Dos anúncios que não vingaram

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Procura-se uma parceira
jovial e vivaz de boa cepa
para velho meio morto.
F52K8



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20111202

Justa homenagem


O gato amarelo

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Certo dia sobre o topo dos telhados da vizinhança surgiu um miado. Depois viram o gato amarelo que vez ou outra aparecia olhando meio de soslaio para as idosas do condomínio. Ele miou com constância heróica por dias e dias. No primeiro dia o máximo que ocorreu foi um comentário entre o almoço e a louça, gato é manhoso. No segundo dia, sob o banho de sol coletivo das senhoras entre um horizonte e outro uma delas grifou, como fazem os filósofos nos pontos-chave do texto, o vizinho não tem gato, tem? A negativa apenas causou um certo alerta, talvez um corpo ou outro precisou se ajeitar na cadeira reclinável. Mas no terceiro dia, na visita do netinho, a miaria pareceu demais insistente, ainda levando em conta a chateação do netinho que não parava de miar junto, tem algo errado com esse gato.

–– Será fome?
–– Acho que ele tá com medo de pular, subiu e não consegue mais descer, dizendo sob o leve riso da piedade.
–– Ele tá aí no telhado faz tempo, fico ouvindo ele miar até de madrugada. Quando ele anda pelo telhado parece uma sirene que vai e volta. Acho que deve ter perdido o filhote.
–– Tem escada aí?
–– Tem.
–– Chama o seu Giovani pra subir lá e tirar o coitado de lá.

O seu Giovani que era velho, mas homem, precisou carregar a escada até o muro oposto do quintal que era alto a ponto de tornar o miado uma assombração. A escada, no último momento, era curta demais, e seu Giovani que não gostava de se esforçar à toa tentou puxar a mangueira dágua pra espantar o gato amarelo –– pois tinha certo preconceito de gatos, pois pareciam estar sempre mentindo –– mas as senhoras o impediram com um leve farfalhar de broncas que levavam em conta o estereótipo do homem selvagem.

Pois não podendo fazer nada além de rezar, as senhoras se comoveram tanto com o fato que durante a semana não conseguiam parar de pensar no gato amarelo –– vamos ter que adotar ele –– a ponto da casa virar uma espécie de Meca da especulação onde se bebia suco de uva e às vezes caipirinhas dependendo do dia da semana e da combinação dos remédios.

Na virada da manhã para a tarde, quando todas as senhoras estavam desprevenidas diante dos noticiários digestivos o gato amarelo foi embora. Quando foram digerir no quintal uma delas resolveu começar alguma coisa, que tarde gostosa, tranquila. A palavra tranquila desencadeou uma espécie de mordida na torrada proustiana e uma delas apenas verbalizou o que todas sentiam simultaneamente, o gato foi embora. A comida revirou nos estômagos na cadeira de maneira que o mesmo pensamento, assim como o mesmo almoço, era absorvido em seus sentidos. Que gato ingrato, todas pensaram com um certo rancor que lhes parecia completamente justificável.


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Dos torpedos que não vingaram

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Ja to la


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carta aberta a inimigos

é isso
que você quer semear?

areia jogada no asfalto?

seus dedos
já são calejados?
já morreram, viraram papiro?

seus olhos
já vitrificaram?
já aprenderam a ser telescópios?

sua boca
já apodreceu?
já arrombou-se a ponto de avesso?

seus pés
já são uma escada?
já alcançaram seu mau paraíso?

sua testa
já enobreceu?
já tornou-se um trono de piche?

seu corpo
já se vendeu?
já dilui-se em feira pagã?

o abismo da própria dureza
a jaula cavada no escuro
tristeza das mentiras desditas
espreitando sem crer sem futuro.

você
já nem existe.

você
tateia com unhas.

você
é uma abstração.

você
grasna sozinho.

você
não possui a palavra.

você
procura seus chinelos.

você
abdica de tudo.

você
vai sumir.