20111201
20101025
Gorila Zé Moleiro
Quando começou a sentir mais falta, olhou primeiro para o seu dedo mais portentoso. Unha portentosa também, perigo a vista... mas Zé Moleiro era curioso e no buraco escavado aprumou o dedão, que machucou a gengiva.
Aí sim, sentiram que ele afligira-se. Não havia uma única bananeira na propriedade de Zé Moleiro, a “jaula” assim dizem, e bananas só em rações periódicas. Zé pensara em estancar o buraco com uma massa mastigada e ele ficou bem, bem irado ao se ver sozinho e desolado.
Quebrou as barras, desculpou-se com seu zelador Pedro e fugiu de vez, aputecido com o descaso e louco por algo que lhe estancasse a dor. Chupou um sorvete que pegou na padaria e com isso se viu calmo o suficiente a buscar um dentista.
Dr. Bicudo o recebeu sem constrangimentos maiores, apenas um incômodo causado pelo bafo de Zé. O procedimento foi simples e no final os dois se sentaram para uma conversa informal. Zé Moleiro expressou suas convicções, especialmente àquelas referentes a administração e Bicudo ouviu atento, pois eram poetas.
- Mas...veja bem, Moleiro – disse enquanto se reclinava e passou os dedos na coxa, para tirar alguns fiapos – Alguma vez pediram ou disseram que a função sua seria exibir os dentes? Não é fato que sua graça está antes no movimento pela jaula e similitude conosco? Por que haveria o diretor de gastar bom dinheiro público em dente que ficaria – se o Sr. se comportasse com o decoro exigido – oculto na maior parte do tempo? O senhor é vaidoso! Vaidoso e egoísta! Um vaidoso mimado! Deveria arrancar-lhe de volta o pivô e puxar mais alguns em companhia! Ladrão vaidoso!
O doutor balançou as mãos e cadeira enquanto percebia o quão patife ele parecia, ali querendo consertar o que não precisa ser consertado, e seu ataque foi feito com orgulho cívico e um pouco de medo (afinal, era um gorila); não obstante, Zé Moleiro absortou-se em alguma vergonha – pois também tinha algo de Homem - e saiu, honesto, desapontado. Ao dobrar esquina, cravou os molares numa moça de bijuteria e perdeu todos eles e ela; viu o pivô incrustado (que gorila usa pivô?) ali no pescoço caído da moça que era bonita mas não forte o suficiente e, criminoso, voltou-se à jaula.
Enquanto isso o doutor se levantou, passou os olhos pelos livros do consultório na estante como que para mostrar erudição e em pose acabou tendo que sorrir para si mesmo e olhar para os lados. Triunfo em haikai!
macaco safado
mostra sua malvadeza
metendo no bolso
20091024
Carcará é bicho ruim
Carcará é bicho ruim, carniceiro. É bicho esperto, ligeiro, secador de gente viva, mordedor de gente morta, morde-olho. Morde as bolas. Carcará é bicho que sobrevive, que não tem vergonha de sobreviver.
Seu Antônio dá tiro em carcará por prazer. Emília não gosta mas também não é de reclamar. Emília é que nem carcará...
Noutro dia, seu Antônio sai pro mato de carabina em mão, montando uma égua boa sem sela, indo lá pro ribeirão. Sai rindo de aguardente, cruza o rio e segue em frente, que com jacaré ele não brinca; em jacaré ele não atira. Jacaré é bicho duro, sabe lidar com a correnteza. Seu Antônio — é certeza — noutra vida, se não foi, será ou é: jacaré.
Daí que baixa a cabeça, tira o chapéu, até, conforme passa pelos troncos vivos à deriva e continua seu caminho. Hoje ele quer matar veado, mas vê gente chegando doutro lado. Gente carabinada que nem ele, mas o fim é que é outro. Gente que vem matar jacaré pra tirar couro.
Seu Antônio sente a mão coçar pra pegar a arma contra eles, mas no fim ele se acalma. Porque jacaré não tem medo e não quer ajuda, jacaré olha no olho e não desvia. Não foge. Se intrometer ali era pecado maior que fazer bolsa de filhote. Serem eles cinco e ele um não conta, não, que seu Antônio nunca vai ser gavião.