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20140610

1.

Há muito, muito tempo, mesmo, em uma vila de pescadores, havia um dragão. Os homens e as mulheres, porque naquela vila os gêneros não determinavam a função da pessoa, saíam de manhã para o mar e suas redes voltavam sempre cheias de peixes que eles assavam nas chamas fartas de fogueiras coletivas, e sempre havia música e comida em abundância. Os trabalhos eram divididos e a comida também. Quem não podia pescar, ou não queria, porque naquela vila as pessoas eram relativamente livres para fazer suas escolhas, se ocupava de cuidar das crianças e ensiná-las, de proteger as casas contra animais selvagens, de fazer os reparos necessários nas construções, de fazer arte, de cuidar dos doentes, de fazer estradas, de construir embarcações ou o que mais fosse necessário. E evidentemente algumas pessoas optavam por não fazer nada e apenas se beneficiar do trabalho alheio, o que também era possível naquela vila, mas a maioria das pessoas simplesmente não queria isso, ou pelo menos não na maioria dos dias. De um modo geral, era uma vila harmoniosa e funcional, cujos poucos desentendimentos ocasionais eram prontamente solucionados por um grupo, eleito entre todos os moradores e representativo tanto dos interesses das maiorias quanto das necessidades das minorias, equivalente ao que nós habitualmente chamamos ou deveríamos chamar Judiciário. Mas o dragão era um problema.
Ele dormia em uma montanha próxima, uma montanha cujo cume era coberto de gelo em todos os meses do ano, mesmo quando o povo lá em baixo ardia sob o sol, mas a cada quinze dias, ou um pouco mais, se o tempo fosse bom e o ar estivesse calmo, ou então um pouco menos, quando chovia muito ou as ventanias vinham do sul, ele acordava. Voava por sobre a vila, destruindo casas com seu fogo, afundando barcos de pescadores ou mesmo caçando pessoas para comer. Se ocupava dessas malfeitorias por um mês, ou um pouco mais, caso estivesse bem disposto, e de qualquer modo nunca menos do que isso, e então batia as asas novamente em direção à montanha, onde se acomodava para dormir, inocente, por mais quinze dias, ou um pouco mais, ou um pouco menos.
Os moradores da vila se incomodavam muito com esse infortúnio, mas durante muito tempo não fizeram nada a respeito, porque acreditavam que o bicho podia um dia simplesmente ir embora ou morrer de velho. Ninguém sabia muito bem por quanto tempo vivia um dragão, já que não conheciam nenhum outro, pelo quê eram gratos, e aquele nunca havia morrido, pelo quê lamentavam e porque não lhes parecia muito fácil matar uma monstruosidade daquelas. Um dia , porém, um grupo de pessoas, eleito entre todos os moradores e atento tanto aos clamores das maiorias quanto ao silêncio das minorias, equivalente ao que nós habitualmente chamamos ou deveríamos chamar Executivo, decidiu que era hora de fazer alguma coisa.
Assim, como era o costume do lugar, todos os moradores se juntaram e saíram em direção à montanha, exceto por aqueles que não podiam fazer a viagem, por motivo de saúde, idade ou presença de deficiência motora, e por aqueles que optaram por não ir, o que também era possível naquela vila. No fim das contas, cerca de metade da vila saiu naquele dia e caminhou pela pradaria em direção à montanha, levando consigo apenas algumas ferramentas básicas, umas poucas trocas de roupa e alguma comida.
Enquanto caminhavam, uma pessoa foi mordida por uma cobra peçonhenta e morreu ainda na mesma noite, após horas ardendo em febre. Enquanto escalavam a montanha, três pessoas se feriram com graus diferentes de seriedade e decidiram voltar à vila, julgando-se, com ou sem razão, impossibilitadas de seguir a viagem. E a elas se juntaram as outras tantas que se cansaram, se amedrontaram ou por qualquer outro motivo desistiram de seguir viagem em direção ao cume, de modo que três sétimos da vila, apenas, chegaram ao ninho onde o dragão dormia, inocente. Essas pessoas se viram, então, diante de uma criatura de dimensões colossais, de escamas impenetráveis, cuja respiração era capaz de aquecer todo o ar em um raio de cerca de quinze metros, e constataram sem grande surpresa que a tarefa de executar um dragão não seria simples. 
Nessa vila, porém, as decisões não eram tomadas precipitadamente, de forma que muito já havia sido deliberado acerca de como seria o curso de ação para cumprir a missão de eliminar a terrível ameaça. Para começar, haviam concluído que o ideal seria aniquilar a fera em apenas um golpe, evitando-se assim o inconveniente de o animal acordar e começar a fazer coisas desagradáveis, como se defender ou, o que a opinião geral havia reconhecido como muito pior, contratacar. Uma pessoa observou que seria difícil subir a montanha levando armamentos, também porque aquela era uma vila de tendências pacíficas que nunca havia dedicado grandes esforços à indústria bélica. Outra pessoa sugeriu que uma alternativa seria simplesmente empurrar o dragão montanha abaixo, deixando seu próprio peso e a gravidade cuidarem do serviço. A proposta tinha a vantagem de dispensar equipamentos cujo transporte seria inconveniente, mas foi rapidamente rechaçada pelo grupo, que supôs que o dragão provavelmente acordaria durante a queda e, acordado, não teria dificuldade para simplesmente agitar as asas e voar montanha acima ou mesmo em direção à vila. Outra sugestão consistia em introduzir --- pela boca, pelas narinas ou por onde fosse possível --- pólvora e combustíveis variados no dragão, para posterior explosão da criatura. Essa ideia, porém, também não resistiu à sabatina, visto que considerou-se, com muita pertinência, que introduzir materiais inflamáveis ou explosivos em uma criatura basicamente constituída de fogo seria uma tarefa inglória. Finalmente, o consenso geral foi o de que o dragão deveria ser acorrentado --- da maneira mais sutil que os habitantes da vila pudessem fazê-lo (e os habitantes daquela vila, ou ao menos alguns deles, sabiam ser bastante sutis, visto que se empenhavam a toda variedade de processos artísticos ou científicos que exigiam grande precisão) --- até que não houvesse chance de escapar, e, então, o grupo poderia se posicionar em local seguro e atacá-lo com as ferramentas de que dispusesse, ou, ainda, embora esse fosse um ato de crueldade que contrariava a moral da maioria dos habitantes daquela vila, deixá-lo lá, incapaz de levantar voo ou caçar, até que ele morresse de fome, de sede ou nas mãos de quaisquer predadores que ousassem se aproveitar de sua impotência.
Assim, em resumo, os moradores da vila que resistiram à viagem se encontraram finalmente diante daquela criatura de dimensões colossais, que respirava fogo e os amedrontava mesmo em seu sono, cientes da dificuldade da tarefa que lhes cabia, mas dotados de um plano. O grupo se organizou então de modo a que todas as partes desse plano pudessem ser executadas adequada e simultaneamente, e passou a se ocupar da colocação das correntes que deviam ser inicialmente presas a porções rochosas da montanha (e não a árvores ou a pedras que pudessem ser posteriormente carbonizadas ou movidas, respectivamente, pelo dragão) e depois cuidadosamente passadas por sobre o animal, com o cuidado de imobilizarem-se todos os membros e articulações (as do rabo despertando particular preocupação); da fixação, por cima das asas do bicho, de uma rede feita com grandes tiras de couro; de vestir por sobre os olhos do dragão uma imensa venda que lhe retirasse totalmente a visão; de amarrar-lhe o maxilar, dificultando que ele voltasse a exibir os dentes ou soprar fogo sobre quem quer que fosse.
A execução dessas tarefas se deu, de um modo geral, com grande precisão e cuidado, mas, de todo modo, os eventuais erros decorrentes da inépcia de alguns dos habitantes daquela vila ou do simples nervosismo causado pela proximidade com aquela criatura terrível foram encarados por todos como naturais e inevitáveis em uma empreitada de tal magnitude, também porque naquela vila os moradores procuravam sempre ajudar àqueles com dificuldade e atuar e forma a minimizar os efeitos das diferentes habilidades de cada um, ao invés de criar ou incentivar discriminações baseadas nessas diferenças. A despeito disso tudo, porém, e também porque, como todos sabiam, matar um dragão não era tarefa fácil, ainda que se tivesse um plano, a missão daqueles moradores que subiram a montanha e encararam o dragão foi tremendamente mal sucedida. Isso porque, em meio à execução dos procedimentos todos que constituíam a estratégia dos habitantes da vila, todos eles descritos acima, o dragão --- em decorrência, talvez, de algum dos erros também descritos acima, ou de algum outro, ou ainda por outra razão qualquer --- acordou.
Os habitantes da vila que haviam resistido à viagem, e se deparado com o dragão, e iniciado os procedimentos que deveriam levar à sua execução --- tais moradores estavam empenhados justamente em tais procedimentos quando tal dragão respirou mais profundamente (matando por combustão meia dúzia de tais moradores), abriu os olhos do tamanho de choupanas e agitou sua enorme cabeça, através de espasmos violentos de seu enorme pescoço (ferindo, por contusão, outra meia dúzia de tais moradores). O monstro agitou suas asas, arremessando ao ar couro, correntes e uma terceira meia dúzia de habitantes daquela vila, e então saltou com um gesto brusco de suas patas traseiras, cujos músculos se demonstraram mais duros mesmo que as próprias rochas da montanha nas quais eram presas as correntes.
O salto imediatamente se transformou em voo, mas um voo que nada tinha a ver com o planar tranquilo das águias que giram nos céus aproveitando-se das correntes de vento, se assemelhando muito mais com os mergulhos que essas mesmas águias davam ao avistar, ao longe, suas presas. Assim, o dragão se atirava em fúria contra os habitantes daquela vila que haviam chegado até seu território, todo garras e dentes e chamas, com precisão perfeita e velocidade violenta, e esses moradores, que haviam levado consigo apenas umas poucas armas montanha acima, e de qualquer forma nenhuma delas de fogo, porque o fogo era o elemento do inimigo, lutavam contra ele da forma como podiam, ou então não lutavam, porque não podiam ou porque não queriam fazê-lo, preferindo correr ou se esconder ou contemplar a morte que se impunha contra eles.
Metade das pessoas que haviam chegado ao ninho do dragão, e que correspondiam a três catorze-avos da população da vila (se bem que esta, a esta altura, também já havia sido bastante reduzida) havia morrido antes que qualquer dano pudesse ser infligido ao inimigo; outro quarto (ou três vinte-e-oito-avos, ou outra fração qualquer que considere as baixas sobre a população total da vila) morreu quando o dragão ainda parecia simplesmente imbatível. Mas então alguma coisa aconteceu.
Com menos inimigos, o réptil, habituado a atacar grandes aglomerados de gente, perdeu eficiência. Ao contrário do que ocorre com predadores como as leoas ou as chitas, o dragão não adotava usualmente a estratégia de seguir uma única presa em meio ao rebanho, mas sim a tática, usada por golfinhos ou tubarões, de juntar uma grande quantidade de animais em um mesmo ponto, cercando-os e encurralando-os, para depois abocanhar um grande número de uma só vez. Isso funcionava bem quando o intuito era conseguir comida na vila, mas trazia dificuldades agora que, movido por um desejo de vingança, ele pretendia aniquilar cada um e todos os indivíduos que haviam chegado até seu ninho.
Os moradores da vila ainda morriam ou eram feridos pelo bicho, mas agora, espalhados e escondidos entre árvores e pedras, começou a lhes parecer possível sobreviver. Mais um pouco e algumas daquelas pessoas, primeiro uma e depois outras, mas decerto não todas, se convenceram de que, com algum cuidado, seria possível inclusive atacar o dragão. Assim, saltando de trás de uma pedra com uma faca na mão ou atirando uma seta do topo de uma árvore ou ainda girando alguma corrente pelas costas do bicho, aquelas pessoas começaram a machucá-lo. 
Quanto mais lhe feriam, mais o dragão se confundia. Não demorou muito, começou a sangrar.
A luta foi lenta e o dragão continuava a atacar e ferir e matar pessoas, mesmo enquanto essas tinham algum sucesso em também atacá-lo, e também ferirem-no. Finalmente, restou ao dragão um último suspiro de vida; e restou, ao grupo de moradores da vila que havia subido a montanha e chegado ao ninho e lutado, uma única mulher. Os dois se encararam, um de frente para o outro, o dragão caído ao chão e já com os olhos semicerrados, a mulher assombrada pela enormidade das mortes que havia presenciado, e ambos sabiam o que ia acontecer. Não foi preciso mais que um chute --- um chute sem raiva nem crueldade; um chute que foi apenas o que era preciso --- para que estivesse tudo terminado.

***

Muitas vezes depois disso, a mulher se perguntou se teria sido apenas coincidência. 
Era possível, claro, que aquela vila fosse protegida por alguma entidade mágica que quisesse demonstrar seu agradecimento à mulher que matou o dragão. Era possível, também, que o dragão guardasse uma última maldição para quem o matasse. Ambas as hipóteses eram possíveis e capazes de explicar o que aconteceu depois. 
Mesmo assim, nos anos seguintes, ela não pode deixar de pensar que poderia ser só coincidência. Talvez, com ou sem a morte do dragão, ela estivesse mesmo destinada a viver para sempre.

20130227

Sexo no banheiro

Entraram no banheiro sorrateiramente, a respiração curta pelo tesão potencializado pelo perigo de serem pegos. No quarto, o irmão usava o computador. Na sala, os pais e familiares. Dentre eles, tia Regina, fiscal da moral e dos bons costumes, que não cansava de pregar que sexo só depois do casamento (mas não explicava o porquê abortara quando ainda solteira: teria sido fecundada pelo divino espírito santo ou usara um sanitário infectado no shopping?), e era capaz de vomitar de nojo caso soubesse que estavam transando sob o mesmo teto que ela.
Ela ligou a água para disfarçar. Meu pai me mata se pegar a gente aqui. Ele sequer chegou a tirar toda a roupa. Em menos de cinco minutos estavam satisfeitos relaxados contentes. Ele girou delicadamente a chave e baixou a maçaneta: a porta não abriu. Preferiu nem comentar nada: se ela descobrisse que ele esquecera a porta destrancada, quase teriam uma briga ali mesmo. Novamente, girou a chave delicadamente e baixou a maçaneta: a porta não abriu. Girou a chave já um pouco menos cuidadoso: seguia trancada. O que houve? – ela estranhou a demora dele para sair. Não sei, parece que quebrou. O que quebrou? Ela foi até a porta e girou a chave várias vezes: a mesma coisa. Puta merda! O que a gente faz? Sei lá, tenta aí. Ele seguiu girando a chave, com algum cuidado. Ela se desesperou: sai! – o empurrou e começou a forçar a chave, agora sem qualquer precaução, forçou a porta, a maçaneta: nada. E agora? Agora fudeu, vou ter que chamar pra virem abrir pra gente. Meu pai já havia avisado que a chave andava perigando quebrar.
Tia Regina não vomitou de asco, e ainda cerrou fileiras com mais afinco nas visitas seguintes.

20110928

se eu fosse rápido, muito rápido

minha mão teria se estendido e agarrado seu braço e você me encararia (a surpresa da violência)  e eu soltaria seu braço (a consciência da violência) e ainda sim seria nosso fim

20110331

fragmento azul

José sempre soube que ver as coisas era questão de escolha; obviamente pode-se desviar o olhar mecanicamente, com torções do pescoço ou movimentos de corpo inteiro e até mesmo fechares de pálpebras, mas esquece-se às vezes que a visão é um processo cognitivo e, portanto, passa necessariamente por uma etapa de reconhecimento semântico - a imagem "bruta" absorvida é submetida a uma transformação em significado. Esse processo é, sabia José, totalmente voluntário e controlável.

Foi assim que José não viu a morte - com a combinação ágil de piscadelas de ginasta e uma espécie de autismo fabricado, desfez o que se fazia à sua frente: um corpo de mulher desabando como tijolo em nada, já sem sentido. Dizer que continuou andando daria um tom maior à dramaticidade, mas é mentira: nem mesmo estava em movimento quando aconteceu, os pés plantados no chão como quem vê a lua com telescópio, um suíngue lentíssimo balançando-lhe os quadris enquanto admirava o que quer que fosse que caía. E então -- nada.

Gabriel lhe perguntou desesperado, bêbado talvez, afinal o que acontecia ou acontecera - mais cinco ou seis ao redor, círculo do telefone-fogueira, queriam saber, aflitos. José não o via, não é preciso falar, e a voz de Gabriel era quase um slogan alienígena surgindo metálica. Disse apenas que não sabia, que não tinha como saber, e desligou.

Viu-se no espelho de relance, distraído, e reconheceu sangue nos seus sapatos, antes que pudesse evitar. Fechou os olhos mas não foi suficiente

[apenas um adendo de qualidade duvidosa
e veneno histórico:
josé era o filho do neto do longínquo descendente
de um famoso bandeirante cujo nome já se perdeu
homem de grande bravura
de grande corpo
de longa espada.
desgraçado pelo sexo
(de uma nativa)
atocaiou-se em minas gerais
em uma gruta
em uma cachoeira
tornou-se bruxo
renascido Hermes
e viveu de cogumelos
até se tornar constelação]

pois o que estava visto estava visto, sem negociação. Naquele bar, quase gentrificado a ponto de se tornar uma padaria familiar, não havia ninguém que se importaria, creu ele. Comprou um café, uma cachaça, uma cerveja e uma coca-cola e bebeu-os nessa ordem, o mais rápido possível. Ao fim, tão enebriado quanto sóbrio, dirigiu-se ao banheiro e lá se trancou.

José também sabia outra coisa que esquecemos: morrer. Morreu, então.

dentro de uma estrela que na verdade é fria como todas as estrelas porque estão no espaço dentro de uma sala mobiliada como uma mesa de bilhar dentro de um armário de madeira de lei composto por mozart está josé de olhos abertos vendo ela dançar sobre desenhos de giz que talvez sejam o retrato de um ex-general sem nome e a dança é incrivelmente bonita e lhe faltam palavras

20101020

PRESQUE RIEN, numéro un.

— Je suis à bout de souffle ! — elle m’a dit — La vie est impossible !

— Oui, oui — je riais à elle, qui était gracieusement jolie quand son air « existentialiste » la possédai —, mais Godard ne peut aider personne.

— Je ne le crois pas. Pour quoi ?

— Parce que ! Écoute-moi : je vais acheter quelque chose là-bas, donc… Ne fais rien de stupide, d’accord ?

Elle m’a regardé attentivement. Je ne savais pas ce qu’elle pensait (bien sûr, ceci n’est pas de la littérature ! c’est le… cinéma vérité ; presque !), mais je savais que je pouvais croire en elle :

— D’accord, d’accord. Le suicide n’est pas la réponse aujourd’hui — elle a dit, en fermant les yeux – Je dors et j’oublie tout. Si j’étais américaine je pourrais acheter une mitrailleuse et… « Tatatatata » ! Les assassinats aléatoires !

— Heureusement, nous sommes brésiliens et tout que nous faisons c’est assassiner le français. Veux-tu quelque chose à manger ?

— Oui, merci. Un pain au fromage.

— D’accord. Au revoir !
Je suis parti, elle est restée là.


C’était la dernière fois que je l’ai vue. Merde.

20100502

Agee - "O que poderia ter dado na telha"

Dois meeiros: vestem macacões surrados e camisas de algodão branco. Ambos têm menos de quarenta anos:

Old McKernel: 32, chapéu largo.
Buddy Horace: 36, bigode juvenil.

Eles dividem um quarto de uma casa.

A casa fica em uma cidade.

Na verdade, deixaram de ser meeiros, mas mantém o costume.

Tradicionalmente se vestem assim.

Não plantam nada: recebem dinheiro para compras em supermercados quase diariamente.

Dinheiro é entregue pelo correio.

Com eles vive um homem de cinqüenta anos.

Ele trabalha em uma tabacaria.

Especialista em charutos.

Old McKernel sabe plantar folhas de tabaco como ninguém, mas o solo do quintal mostra-se progressivamente mais infrutífero.

Buddy Horace pratica pandeiro.

Quem cozinha para os dois é “Phud”, o tabaqueiro.

Ele é o dono da casa. Suas roupas são mais modernas do que se esperaria de um homem de cinqüenta anos.

Que trabalha em uma tabacaria.

Sua filha, Georgette, mudou-se para Buenos Aires há pouco tempo: não conheceu ainda os meeiros.

Na verdade, quem mais interage com os dois é o irmão de “Phud”, Don, de 65 anos. Ele é professor de artes.

Uma questão atormenta Buddy Horace profundamente: ele não gosta de Old McKernel, que teria desvirginado sua esposa uma semana antes do casamento.

O casamento foi anulado, e Buddy Horace ficou muito triste.

Buddy Horace empurra Old McKernel para o meio da rua num dia desses.

McKernel, obviamente, não morre nem nada: um carro vinha mas desviou.

Quem mais se emputece é o motorista.

20091022

Por mais caracteres no post (ou "vai assim, mesmo")

É peso na consciência, não. Não, não, é só o meu estômago.


Eu tinha ligado para o Artur naquela noite, mas ele ia sair, não sei com quem. Eu liguei pra outras pessoas, também e ele que saia com quem ele quiser, mas ninguém mais estava na cidade porque era feriado, então eu pedi uma pizza de calabresa e comi no sofá enquanto assistia a um filme dublado na TV. Eu comi quatro pedaços, o que é muito mais do que eu jamais vou deixar alguém saber que eu aguento, e deixei cair calabresa no sofá, mas deitei em cima, mesmo, e deixei o resto da pizza no chão pra comer depois. Não era nem meia noite e eu já tava dormindo.

Aí ele me acordou; ele ligou no meu celular e eram três e meia e só pelo jeito que ele disse alô, eu entendi (eu sempre entendo). Eu disse vem cá e desliguei o telefone e xinguei ele por vinte e cinco minutos até a campainha tocar. Ele que saia com quem ele quiser, mesmo, mas o filho da puta arruma as vadias dele e termina a noite sozinho e fica todo inseguro e deprimido. Aí ele me liga e eu digo vem cá e xingo ele por vinte e cinco minutos, às vezes mais, às vezes menos, eu xingo ele até a campainha tocar.

Você quer pizza, eu perguntei, e ele fez que sim e sentou e comeu tudo o que tinha sobrado, acabando com minhas perspectivas de ter um café da manhã decente. Aí ele limpou a boca na manga e não disse nada e enfiou a mão por baixo da minha blusa e me comeu no sofá sem tirar a roupa e foi embora. Eu fiquei ali, mesmo, e só depois de acordar é que eu me limpei.


E eu nem era sempre assim, se você quer saber. Quando eu resolvi vir pra São Paulo... Puts. Na verdade – e puta merda, você não ia acreditar –, tinha esse cara em Jarinu, o Renato, e ele era tipo meu melhor amigo, tipo essas coisas que a gente vê em filme e pensa puta que o pariu, isso nunca ia acontecer. A gente era amigo desde sei lá, uns cinco ou seis anos. Desde pirra. Mas amigo daqueles que acordam e já se encontram e não desgrudam até a hora de dormir, sabe? Amigo daqueles que brigam toda semana e choram a noite toda e no dia seguinte se encontram todo tímidos só pra ser amigo de novo. Amigo tipo amigo, mesmo.

Quando a gente tinha uns dezesseis, dezessete anos – e a gente nunca tinha namorado, porque acho que as coisas eram diferentes, ou só a gente é que era (e a cidade era pequena, também. Foda.) – aí ele corria atrás de mim na rua e eu fugia rindo e trombava com os pedestres. Ele vinha atrás querendo me pegar mas sem querer de verdade, e a gente dava voltas em pontos de ônibus até que ele me alcançava e me empurrava na grama e a gente se rolava no chão. Eu ria o tempo todo, quando estava com ele, e eu acho que realmente gostava dele. Talvez a gente se amasse, sei lá.

Eu sei que noutro dia (mas isso foi depois, eu já devia ter uns dezoito, foi logo antes de eu me mudar), noutro dia a gente foi na casa dele ver uns filmes e eu queria muito, sabe? Eu tinha dezoito anos e tava começando a me ligar, então eu queria mesmo. Mas a gente assistiu aos três Star Wars em sequência e tomamos muita, cara, muita vodka, mesmo. Ele tava malzão, sim, mas ele virou pra mim e me puxou com força e aquilo foi ruim demais. Eu deixei ele ser egoísta, sim. Eu deixei ele me segurar os braços, forçar minha boca, eu deixei ele tirar a minha roupa naquela noite e é capaz até que ele tenha gostado, mas quando eu fui pra casa dele eu queria muito, e aí ele estragou tudo, meu, ele estragou tudo.

20091010

Atividade_17: um Texto fora de seu Tempo natural e, portanto, ainda pior do que simplesmente ele (OU: DISTANCIAMENTO HISTÓRICO)

Naquele dia choveram molotóves.

Bum badabum bada-plasch! Era tanto fogo que nem dava tempo de pensar que era fogo.

Comia capacete, escudinho, farda, armadura. Os cacetes de borracha e ferro brochavam na mesma hora.

No chão também queimavam os cravos – ah, sim! Nem o tanque resisitu e também queimou, rosa-choque e não-aprovado-em-assembléia.

As faixas, os cartazes, as botas e as balas de borracha queimavam tudo junto num fogo só, repressão e reprimido berravam do mesmo jeito debaixo do vidro e do fogo que não parou de chover até acabar aquela palhaçada toda.

Havia um deus, e ele ouvia sex pistols.

20090814

de quantas pessoas eu preciso pra chorar uma semana

não gosto do jeito que me toca.
não é, ou pelo menos não parece ser... humano, ou até mesmo vivo, de tão clínico que me traz seus dois-três dedinhos enluvados, engomados e gelados.
me afogo.
engulo meu aiaiai porque sou orgulhoso como uma tala, mas não sou capaz, jamais serei, de esconder a murchez que me ataca com os seus toques mortálicos... antes não fôsse assim - antes não era, minhas fibrinhas sorriam sanguinolentas só de ouvir o som tacundo que você fazia no corredor logo antes de entrar no quarto e era tão bom, mas não mais, não mêsmo.
eu não te engano e nem quero, mas você não liga, com seus chuveirinhos, bombinhas e relógios finos de aço - sem nem falar das alavancas e seguradores, empurradores, cortadores tão gelados e tão ardidos.

mas qualquer dia desses eu te esgano.

20090606

Fazendo as contas, no fim das contas, continuo sendo exatamente o mesmo.

Fomos 5, eu era 1 - ou seja, infinito -, mas, quando se fizeram 2, que trouxeram os 4 para todos, eu, infinito, tornei-me nada: sumi.

20090605

Atividade_2: Chá

Nice entrou no quarto e atirou a mochila ao chão. Fechou a porta, abriu a janela, tirou a blusa e se deitou, dormindo a tarde inteira sem almoçar. Quando acordou horas mais tarde com frio e com fome, se levantou, fechou a janela, vestiu um moletom e foi para a cozinha. Comeu um resto de risoto de frango, um pote de sagu de vinho e banana-nanica. Tocou o telefone, era Guilherme perguntando se ela ia ao show naquela noite; Nice diz que sim.
(...)
São sete da manhã e Nice ainda dorme. Quando acordar vai perceber que está sem voz. Quando levantar vai perceber que está sem nenhuma roupa por baixo da coberta. Quando colocar os óculos vai perceber que na sua mesinha-de-cabeceira existe uma xícara coberta por um pires. Se ela erguesse o pires, encontraria um chá ainda morno, fumegando de leve à camomila e gengibre, mas não ergue, não cheira, não bebe. Só aos trinta e tantos anos de idade, descasada e malempregada (enquanto mulher) é que Nice vai perceber que xícaras de chá não se fazem sozinhas.

Por enquanto, só lhe resta mostrar seus peitinhos para Mim, do prédio ao lado.

20090602

Foi Gustavo quem me chamou para morar na república,

mas quando eu cheguei lá, todos estavam, menos ele. Todos eram Laura, Alex e Joana. E agora, eu. Eu era Rodrigo e Fernando, eu era todo mundo. Eu era todos os que sentem vergonha ou o desconforto de estar e não ser. As pessoas gostam de substantivos, como se as pessoas ou as coisas fossem elas mesmas, quando na verdade nós muitas vezes somos um tempo, um verbo. Eu era, portanto, entrar, corar, pedir licença.
Laura e Joana ficaram olhando e não disseram nada, enquanto Alex parecia não ligar para mim, então eu disse oi e o meu nome, e contei da oferta de Gustavo, me surpreendendo quando Alex perguntou se então eu ia morar ali. Ia. Ele assentiu, elas voltaram ao que quer que estivessem fazendo e foi só então que, enquanto levava minhas coisas para um dos quartos, eu me senti em casa.
Eram dois quartos, na casa, então supus com razão que eles eram divididos entre o masculino e o feminino. Ajeitei minhas coisas no quarto que Gustavo até então dividia com Alex e, na falta de uma terceira cama, estendi um lençol sobre um sofá velho, que me seria mais do que suficiente. Experimentei deitar e testar as almofadas, que me pareceram confortáveis o bastante. Depois, quando me levantava, Gustavo entrou, feliz pela minha aparente adaptação à nova casa. Então, ele perguntou o que achei. Respondi um ótimo ótimo e joguei novamente a cabeça para trás, soltando-me sobre o sofá e provando o que dizia. Ele ficou satisfeito, e me chamou para a sala, onde eu finalmente teria uma chance de conversar com meus novos companheiros de casa.
Joana ainda era Joana, ainda era uma pessoa silenciosa e arisca, ainda me olhava com alguma indiferença enquanto costurava alguma coisa. Essa era ela e não era exatamente hostilidade o que ela me direcionava, ao contrário de Alex, que claramente também era ainda Alex, e me evitava abertamente. Laura era quem mais havia mudado e agora falava comigo de forma quase franca, demonstrando um humor muito próximo ao de Gustavo, o que, a essa altura, muito me agradou. Ela pegou um violão e os dois insistiram muito para que Alex o tocasse, então foi logo no primeiro dia que eu formei a imagem que guardaria por todo o tempo que se seguiu como sendo a de meus companheiros: Alex encostado na parede, o violão tocando uma música que eu não conhecia; Joana deitada de bruços com a cabeça apoiada nas mãos e os pés erguidos para o ar; Gustavo abraçando as pernas, sentado; Laura olhando vidrada, quase sem se dar conta de que sorria, e por muito tempo eu me perguntei se era a visão em primeira pessoa o que me impedia de fazer parte da cena.

As tarefas se dividiam, louça num dia, lixo no outro, as despesas, idem, e assim é que vivíamos. Depois que cheguei na casa, que ficava a mais de cem quilômetros de qualquer coisa, mais de um mês se passou antes de eu sair dali para qualquer motivo que não fosse comprar comida, materiais de higiene e qualquer coisa que fosse necessária na casa, mas essas coisas nós comprávamos numa mercearia não tão distante, de forma que ninguém havia ido para a cidade propriamente dita durante todo esse período. Até onde eu podia saber, mesmo antes de minha chegada era assim que viviam e a única ida à cidade de que tomei conhecimento foi a própria viagem de Gustavo, quando de minha chegada. Calcula-se: éramos todos novos e confinados, bebíamos e nos amávamos, tínhamos-nos por irmãos e companheiros.
Durante três semanas, sentávamos no chão da sala e Alex ou eu tocávamos alguma coisa no violão (em geral ele, que era mesmo melhor) e abríamos garrafas de vinho tinto ou de cachaça artesanal, e Laura dançava, e Gustavo dançava e eu dançava. Por fim caíamos, de sono, de bêbados ou de dançar, no chão da sala e lá infinitávamos nossas noites.
Já na primeira semana, percebi que ninguém ali se dedicava a nada que não a convivência. Para conseguir o pouco dinheiro que tínhamos, Joana escrevia poesia, Laura e Gustavo pintavam e Alex compunha modinhas e músicas populares, e as poesias eram nós, as telas eram nós, as músicas eram nós. E eu tinha meu notebook e fazia trabalhos freelancer de design.
Em tudo, acho que éramos assim. Eles eram eles, eu era quase. Inicialmente, achei que Alex havia visto em mim um rival, o que não seria absurdo, embora eu não admitisse à época. Hoje em dia talvez tenha uma ideia melhor do que de fato acontecia, e se for este o caso, afirmo aqui que o receio que ele demonstrava se assemelhava menos à competitividade entre machos do reino animal do que à xenofobia. Eu nunca consegui deixar de ser um estranho, ali, por mais que nenhum de nós se desse conta disso; eu era uma lembrança constante de que havia um mundo lá fora; de que a vida não era só uma casa com vinho e música e artes. Como eu disse anteriormente, não era assim que eu entendia as coisas à época, assim como provavelmente não era essa a interpretação de nenhum dos demais, mas me parece suficientemente verossímil enquanto teoria, e funciona bem como metáfora. Ademais, serve como ligação com as coisas que aconteceriam depois, quando tudo mudou.

Alex ainda se recusava a abrir-se comigo, mas não pôde esconder quando começou a enamorar-se de Joana. Apesar de ter dito, e não menti, que nos amássemos, aquele foi o primeiro envolvimento afetivo, no sentido que talvez outro daria à expressão, entre pessoas da casa. Depois, muita coisa mudou.
Primeiro, tivemos que mudar a organização dos quartos, de forma que Laura passou a ficar comigo e com Gustavo. Essa questão, porém, foi secundária. Depois que passaram a estar juntos, Joana e Alex começaram a frequentar a cidade diariamente.
Como crianças novas demais, os dois demonstravam uma sede enorme de ver tudo quanto havia na noite urbana, ansiavam por ir a cinemas e teatros, a restaurantes e boates e, também como crianças, voltavam para casa à noite escondendo, por meio de relatos incríveis, a frustração por não conseguirem realmente pertencer àquele meio. Sim, adianto-me às adivinhações que decerto surgem da forma como dispus os fatos, e confirmo que me senti vingado quando percebi a forma como Alex e Joana agora se sentiam frente ao mundo que se lhes impunha. Ouso dizer mais: que foi desse meu sentimento de vingança que começou a nascer minha atual compreensão da minha situação estrangeira na casa, e não errará quem estipular que eu aproveitei os novos fatos para tentar reverter minha condição.
Foi quando soubemos, por meio dos aparentemente entusiasmados Alex e Joana, que haveria na cidade uma festa noturna de rua, uma espécie de carnaval fora de época. Animados com a recente euforia metropolitana de Alex e Joana, Gustavo e Laura se interessaram em participar da festa, o que gerou uma situação quase conveniente demais para que pusesse em prática meus planos de aumento de popularidade e intimidade com meus companheiros.

Foi estranho pisar novamente nas ruas esburacadas, nas calçadas tortas. Foi estranho estar novamente entre milhares, ao invés de cinco. A cidade ainda era linda. Imaginar aqueles jovens outrora reclusos se movendo pelas ruas escuras, pelas calçadas esburacadas e pelos corredores abarrotados de gente, imaginá-los entrando em bares, desviando-se de automóveis, trombando com desconhecidos, imaginá-los usando banheiros químicos e dançando ao som de trios elétrios, pode ser desafiador, e se serve de consolo ao leitor, confesso que mesmo visualizar as cenas me foi custoso. Eles eram tímidos, mas não podiam evitar que se destacassem dos demais, e eram maravilhosos e eu os amei demais naquele momento. Eu, se não completamente afeito à situação, era ao menos o mais descontraído dos cinco, mas ainda me doía que não me seguissem. No começo, achei que fosse o entusiasmo, ou essa necessidade que aqueles que se encontram artificialmente em uma determinada posição têm de legitimar que ali estejam ainda que para isso tenham que agir de forma exagerada, muitas vezes forçando uma autoridade maior do que a daqueles que ali nasceram. Essa teoria me explicava o por quê de não recorrerem a mim, mas logo meu incômodo se tornou demasiado.
Não me ouviam (nem Gustavo, nem Laura!), não me incluíam nas conversas entre eles ou com estranhos, não me procuravam quando me desgarrava. Por três vezes fomos obrigados a parar e pedir informações e nas três vezes fui eu quem conseguiu as melhores respostas. Só por isso é que, em uma quarta ocasião, Alex virou-se para mim e perguntou se será que eu poderia ver isso com aquele grupo, porque por algum motivo eu me dou bem com essas pessoas, e foi então que eu fiquei realmente nervoso e falei girando no meio do grupo (porque falava para todos, e não apenas para Alex) que é óbvio que eles se dão melhor comigo porque eles são eu e tudo o que vocês procuram aqui sou eu e eu estou com vocês o tempo todo, mas eu não entendo por quê eu não sirvo.
Eu estava girando e também bêbado, e eu via todos eles, menos Alex e Joana que já não estavam lá (teriam ido perguntar, teriam...), eu via todos, Gustavo, eu via Laura do lado dele e eu no meio e eu via a forma como ela me olhava e foi então que eu entendi.

Depois, não sei bem. Acho que tive um branco, um apagão. Talvez eu só não me lembre. Lembro de Laura, depois. Gustavo foi comprar cerveja, eu acho, ou ao banheiro, ou talvez ele estivesse ali, mesmo, e eu é que não via. Eu falei para Laura que eu tinha entendido, eu falei que eu estou perdendo, não é, e ela disse que sim. Eu disse o jogo, não é, e ela disse que era. Depois eu vi Gustavo, ou então ele voltou. Depois a gente estava em casa, tanto faz. Quando eu cheguei eram quatro pessoas, depois dois casais viraram o mundo. E eu perdi.

20090508

O celeiro ao fim de nosso mandato

(trecho do conto de mesmo nome de Karen Russel, tradução de Cássio Arantes Leite, publicado na primeira edição de Granta em Português)

A garota

A garota voltou. Sua silhueta recorta-se contra a luz do sol, as grandes portas do Celeiro escancaradas. Punhados de feno recém-cortado dispersos e estocados no palheiro. Luz inunda as baias.
– Ei, cavalinhos! – A garota segura um guardanapo de pano cheio de pêssegos. Caminha até a primeira baia e oferece o fruto pálido e amarelo.
Rutherford arqueia o pescoço na direção da mão estendida. Manchas de luz flutuam sobre seu traseiro malhado. Ele lambe a palma da mão da garota seguindo um código que formulou, –.–., significando que é Rutherford Birch Hayes, o 19º presidente dos Estados Unidos da América, e que ela deve alertar as autoridades locais.
– Ah-ah! – ri a garota. – Faz cócega.

20090405

foulish things

I know nothing of the word which's got stucked in here, deepthroat. Homesick all it is, that foulishness digging meself, those who hold me and grasp me the one word, which is not only one, I know. And that's all I know. Pavorous. Not knowing talking, 'hate. But to feel I know end I'm feeling fouly, enmitily, not only mindily, factual. Its in the hand, in the stomach, in the gullet, in everybody... All sic. I'd like you here for feeling with me, E V E R Y! (fou), for feeling I more than it's factual, for feeling I not only you here, but in me 'n in you, for me and for you. For us, I mean. For every which is ours, our life, our day which was ours, I think. I think not, I know. Moreover, I feel. Thats how I imagine being fou is. Come here and that is. That come. That. We can see what we do later later.

autora: Lígia Carrasco
tradução: Ricardo Miyada

20090309

Ele talvez seja

um romântico às antigas, um milionário generoso, um deus na cama, um idiota com um celular. Ele é o cara mais sortudo do mundo. Ela é ela, linda e apaixonada e ele não importa. (Mário de Andrade já diria. Diria, nada! Na verdade, disse, mas não foi assim; não foi bonito.)
E eles vão até o aeroporto no meio do dia e tudo está assim normal, as pessoas turistas, executivas etc. Exceto que ela chega na esteira rolante e se agacha e lança um sorriso alegre-envergonhado e ele filmando tudo. Ela fala alguma coisa e talvez tenha dúvidas quanto ao que está fazendo, mas ela não pode parar agora porque isso é muito mais importante do que ela ou ele ou eles.
Ela tira a camisa e depois a saia e a esteira continua e as pessoas que passam! e ela corre até outra esteira quando a primeira acaba e ele corre atrás e ela tira o resto e se esconde com um braço, mas qual o sentido de se esconder?, então ela se abre e se expõe e ela não se despiu somente das roupas naquela tarde em Kyushu.

O vídeo não poderia não ter ido parar na internet e talvez ela saiba ou consinta, mas também isso não importa.

20090211

Competição de contos

Alunos de uma sala de colegial receberam a tarefa de escrever um conto. Eles deveriam, usando a menor quantidade de palavras possível, abordar os seguintes temas: Sexualidade, Mistério e Tecnologia.
O único trabalho que recebeu 10 foi:

"Porra, cadê meu iPod?"

20081226

visitação, UMA.

A bailarina russa vinha se arrastando por todos aqueles anos, em busca sabe deus do quê.

Encontrei-a no meu guarda-roupa um dia. Ela tremia. Só podia ser fome, porque na Rússia se passa muito frio e fora dela se passa muita fome, disso eu sabia desde menino pequeno. Com isso na cabeça eu fui buscar leite e pão, que era só o que eu tenho nessa vida. Quando cheguei ela já estava esparrimada no colchão cheio de panos, num sono pesado feito o pão preto da sua terra gloriosa. De bonita que era, eu deixei o que eu tinha no criado-mudo e fui pra varanda pitar o meu pito e ver a cidade morrer.

De noitinha eu ia voltar e não ia mais ter leite nem pão nem russa no quarto. A bailarina foi-se embora, sem deixar nem o cheiro das russidades que enroscou no meu lençol com a maior cara-de-pau. Foi aí que eu larguei meu pito e comprei uma garrafita de vodka pra ficar debaixo da cama, esperando visita.

20081225

O Espelho

Voltou então a ler o romance. Deixara-o de lado havia vários dias, por causa de uns devaneios, que não permitiam que ele se concentrasse no livro. Sentou-se em sua poltrona, dando as costas para a janela; não queria nada que pudesse desconcentrá-lo, fazê-lo parar de ler. Abriu o livro. O quase silêncio e a suave brisa que entrava pela janela logo fizeram a narrativa envolvê-lo. Entregava-se às aspas e reticências; não fosse um ou outro barulho, ou uma ajeitada que ora dava na almofada, logo esqueceria que estava, na verdade, lendo. Acompanhava os pensamentos de um jovem perturbado, suas caminhadas pelas ruas de –burgo, seus tropeços. O jovem tinha uma idéia fixa na cabeça, uma obsessão; não sabia, porém, como realizá-la. Fechava-se por horas a fio em seu quarto, folheando algum jornal ou panfleto; olhava para o espelho, buscando uma inspiração, uma oportunidade que fosse; havia um livro sobre uma cômoda, um romance, esquecido, que dera a ele a obsessão. Abria a janela; um leve vento no rosto o ajudava de quando em quando; dessa vez precisava, porém, de uma rajada. Saía de sua casa, sem ao menos trancá-la; apenas encostava a porta. Punha-se a perambular pelas ruas de –burgo, concentrado na sua obsessão; de algum jeito ele conseguiria sua inspiração. Cruzava os cruzamentos, caminhava pelos caminhos, atravessava as travessas, até que chegou a um mirante sobre o golfo, nesses dias, agitado. Era isso! A inspiração, afinal! Correu para sua casa, extático. Trancou a porta ao entrar, correu para a cômoda sobre a qual estava o livro, abriu a gaveta, tirou o revólver, conferiu o número de balas; havia duas, mas apenas uma bastava.


Precipitou-se para a rua, mas foi detido pelo espelho; olhou para aquela imagem, sua imagem, obsessiva, segurando o revólver. Assustou-se; algo estava errado, algo tinha que estar errado. Desviou os olhos do espelho e começou a refletir; talvez ele não tivesse compreendido sua própria idéia, sua própria obsessão. Abriu a gaveta da cômoda e guardou o revólver. Olhou para o livro, o livro que lhe dera a idéia, mas que lhe tirara o chão; sim, ele não compreendera a idéia; quem sabe ela se completaria nos capítulos que restavam. Voltou então a ler o romance.