20101231


Nostalgia é o passageiro gordo que faz o automóvel capotar.

Teve este lampejo enquanto guiava com os olhos petrificados em muitas coisas que ficavam para trás. Não havia muito com o que se preocupar, o tanque estava quase cheio, havia um mapa debaixo do banco, sua garota dormia no banco de trás. O que lhe preocupava era mesmo aquilo que ele já sabia estar em sua cabeça desde sua despedida, desde a partida. O fim. O fim já se vislumbrava em algum lugar entre seus olhos e a pista que rodava suas linhas para debaixo do carro, engolidas por sua escolha. Era o fim, pensava. Era a nostalgia que lhe pesava os olhos.

O lampejo, na curva da serra, para fora em tangente como ensina a prática aos desatentos, piscando dentro de si, como um sub-lampejo: na curva mais curva onde se deve sentir a desaceleração como uma doença e marchar engatado: o passageiro gordo de seus olhos: ainda houve um terceiro lampejo dentro do mesmo, como um resquício que provava que o instante era de fato bastante espaçoso como um esgarçamento em que ele poderia viver mais pensamentos como aquela nostalgia que pulsava entre os dedos do volante na buzinapárabrisaguiapulocrackecurvouseladomoinhosnostalturadodiaboestamosindoevoumeseguraraliquandoeupodereiárvores---***####`````galhosna--

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20101229

elementos sólidos construídos sob perspectiva euclidiana. o homem atravessava a rua e percebia as faixas de pedestre como paralelas. distraído, um carro de frente o acertou.


na linha do horizonte traçam-se encontros entre todas as outras. as duas surfavam por cima de todas as formas daqueles sólidos geométricos sob perspectiva euclidiana. por trás do grande edifício há outro e outro e uma estrada que se encaminha e árvores, além do céu, e um pedaço de mar. sucediam intercalavam. constantemente afastados, sem bordas de frente ao mar.


pisando na areia todo o mundo se abria em grande angular. as duas mal tinham agora, pra onde correr, mas ensaiavam aproximações. há, abaixo, homens e mulheres de mãos dadas escaldando sobre o sol do meio-dia, em devoção. o que sabiam aqueles homens e mulheres de não traçarem percursos ao se constituírem por meros acasos da vida. a criança tropeça e cai ao correr da onda e o menino ruivo a puxa pela mão, erro de cálculo. há distração.


há também, um porém da desmagnetização da Terra, e a reconstituição do espaço , tão necessária. noutro tempo-lugar, um menino olha o mar, distante. as linhas , forçadas ao retorno reconstituem o mundo e entram pelos dois olhos - há algum encontro interior possível, ou é tudo só imagem? o mundo está pronto e, então, ele perde o interesse.


20101228


Não ao sonho lúdico.

20101225

haicu

se lhe como a bunda
é porque adoro bunda
adoro você

Manhã de Natal

Fui dormir espremido entre uma crise de bronquite e uma barriga cheia demais de comes-e-bebes natalícios. Com a digestão comprometida pela falta de ar, meus amiguinhos tiveram que vir em meu auxílio, os sempre-nobres Beroteque e Atrovente. Caí no sono, enfim.
Fui abduzido por alienígenas que me transformaram em um desenho sem cores, congelado no desespero de olhar o mapa que me mostravam, dizendo onde estávamos, para onde estávamos indo (seu planeta) e de onde estávamos vindo (minha casa): o caminho que minha raça teria que percorrer para me resgatar, diziam. Enquanto isso, eles preenchiam minha cara com traços fortes de lápis-de-cor, laranja para a pele e azul nos vincos ao redor dos olhos para representar minha angústia (algo razoavelmente parecido, no fim das contas, com aquele álbum do Crimson King, só que um bocado mais rústico). Era impossível voltar, porque eu e minha raça não tínhamos a Compreensão: das coisas, dos lugares, do espaço. A Compreensão era só deles, prova disso era que nosso GoogleMaps ainda mostrava o território brasileiro como ele sempre fora, quando na realidade, no GoogleMaps DELES, Pernambuco estava preso em um oceano estranho ao lado de uma ilha cor-de-rosa - seu planeta (leur planète). Saí em busca de ajuda pela nave labiríntica, enquanto os alienígenas se riam de mim, de minha incapacidade congênita, meu desespero. Mas eu encontrei, filhosdasputas, eu encontrei!! Aquela garrafinha abaloada com o líquido que me traria a Compreensão! Esfreguei um pouco dele, como fosse uma colônia, na minha testa e na minha nuca. Fui, como se diz, Iluminado. Passei a Compreender, e dizia com grande propriedade, <<todas as coisas são todas as coisas, e todas as coisas não são coisa nenhuma!>>, enquanto eles, malditos despressurizados, me diziam para parar com aquele fingimento, aquela pseudo-iluminação de banca de jornal, aforismo patético, etc.etc., mas eu fui até o computador e VI, num fléche de luz e o mapa era um zoom infinito que ia e voltava e não seguia pra parte alguma, um aproximar e re-aproximar da pequena ilha cor-de-rosa mas cada vez de uma maneira diferente. Eu quebrei as regras, eu me livrei, eu tinha a Compreensão de que não significava nada eu estar aqui ou ali ou no fundo do espaço indo pruma ilha cor-de-rosa transformado em desenho, eu era e estava (i was) o que/onde/quando eu quisesse. E assim dei por mim com a garrafinha abaloada ensinando aos outros, amigos meus ou coisa assim, a como passar o líquido, como ter a Compreensão.
Acordei com a bexiga explodindo de tanto mijo e só me dei conta que já eram onze da manhã quando comecei a escrever aqui, nessa ilha cor-de-rosa.

Conheçam o novo mascote da República

20101223

Parte 6 - A história do automóvel,


eu não sei. Sei que houve Henry Ford e pouco mais que isso, só. Mas eu sei, porque assisto aos desenhos animados, que o carro fez parte do sonho americano e de boa parte das propostas de felicidade e, particularmente, de liberdade anunciadas pela televisão nos últimos anos, correspondendo estes aos anos em que houve carro e em que houve televisão. O automóvel se transformou em um símbolo da felicidade consumista a ponto de estarmos fadados a cortar a parte superior de todas as cruzes do mundo e transformá-las em referências ao Ford T quando vivermos neste admirável mundo novo que tem criaturas tais, ele se tornou o mais poderoso exteriorizador do sucesso humano e, diz-se, um feromônio indispensável nos dias atuais. Junto com a motocicleta, o automóvel representou e representa a fuga, o desprendimento, a velocidade e o que quer que seja que os beatniks queriam dizer e eu acho tudo isso muito lindo, de verdade, mas todos os eus paulistanos foram lá e estragaram tudo.

20101217

Você tem algumas das características mais abomináveis em um ser humano

Você é racista, você é uma ignorante política, você usa o ar-condicionado o tempo todo, mesmo quando não é preciso, você paga pela marca, você faz coisas sem sentido porque "é o correto", você é um pouco machista (mas de forma inocente), você insiste na literatura ruim mesmo sendo uma leitora esperta dos bons livros, você liga demais para as aparências, você quer só o chique, o confortável, o fácil, você tem suas hipocrisias, seus medos, você me põe tanto peso nos ombros, nas costas.


Eu ainda posso te amar?

Enquanto houver burguesia, não vai haver poesia

Burguesia

Composição: Cazuza/ Ezequiel Neves/ George Israel


A burguesia fede
A burguesia quer ficar rica
Enquanto houver burguesia
Não vai haver poesia

(...)

Pobre de mim que vim do seio da burguesia
Sou rico mas não sou mesquinho
Eu também cheiro mal
Eu também cheiro mal

(...)

Vamos acabar com a burguesia
Vamos dinamitar a burguesia
Vamos pôr a burguesia na cadeia
Numa fazenda de trabalhos forçados
Eu sou burguês, mas eu sou artista
Estou do lado do povo, do povo

(...)

A burguesia fede
A burguesia quer ficar rica
Enquanto houver burguesia
Não vai haver poesia

20101216

4º Intervalo – Biologia


Muitos animais, por mais perigosos que sejam, geram nas mais variadas pessoas uma certa simpatia. Os mamíferos, em particular — talvez por serem mais próximos dos seres-humanos, só que sem o inconveniente de poderem ser responsabilizados por seus atos de selvageria —, possuem um séquito tão fanático de seguidores que se uma família pobre do norte de algum país gelado não encontrar forma melhor de se sustentar que matando pequenos filhotes felpudos para arrancar-lhes a pele, é melhor que ela vá se habituando às pedras arremessadas.
Outros vertebrados, também privilegiados, talvez, pela proximidade evolutiva, costumam ser admirados em zoológicos, observados pela TV ou guardados como ornamentos, em aquários. Os filos mais afastados, porém, fomentam a antipatia de algumas pessoas, especialmente as do sexo feminino, que se sentem enjoadas pela mera observação de certos platelmintos ou nematelmintos, por exemplo.
Em particular, porém, os artrópodes parecem ter se especializado em ser odiados por essas pessoas. O grupo reúne aranhas e escorpiões, baratas e mariposas, centopéias e lacraias. São animais com um potencial enorme para gerar horror nos seres humanos, mas nenhum desses é tão preparado para nos incomodar quanto o pernilongo.
Eles sabem como atacar.
Entram pela janela aberta, escondem-se nas sombras e lá ficam, aguardando o momento mais adequado para saírem atrás de seu alimento. E eles se alimentam do terror a que submetem suas vítimas.
Há um entendimento mais ou menos generalizado de que os pernilongos se alimentam de sangue, mas o sangue que sugam não passa de uma desculpa para nos importunar. É só uma forma de fazer com que as pessoas se apavorem frente à presença desse minúsculo inimigo. A picada é apenas uma forma de o pernilongo ser lembrado por um tempo mais longo.
E tudo começa no verão, quando está quente demais para o uso de roupas que os mantenham afastados. Começa, também, à noite, quando as pessoas se sentam no sofá e começam a ler um livro à juz do abajour. A luz é o sinal. De repente, uma sombra cambaleante projeta-se na parede. O pavor é imediato. O inseto voa perto da lâmpada, gerando uma sombra monstruosamente grande que dança por um tempo — tempo suficiente para ser notada — e depois desaparece.
Quando o leitor interrompido decide averiguar o fato, nada encontra — os pernilongos são mestres em desaparecer. Pode-se seguir um com os olhos atentos até que, cedo ou tarde, ele fatalmente sumirá. Já preocupado, o leitor considera, enfim, que já é hora de ir dormir. É o primeiro erro.
É na cama que, com o perdão da brincadeira fácil, começa o pesadelo. Deitado, no escuro, o indivíduo ouve o familiar zunido. Não há nenhuma justificativa evolutiva que explique o zumbido do pernilongo. Quando se leva em conta que é um animal furtivo, que se aproxima sem ser percebido, o barulho parece ser somente um empecilho.
Porém, agora que sabemos que o pernilongo se alimenta de pavor, podemos desvendar a verdadeira razão para o famigerado som, um dos mais temidos do universo conhecido. Voltemos ao nosso personagem.
Estava ele, dissemos, deitado quando ouviu o som. Tentar acender as luzes para localizar a fera é inútil: o animal desapareceria imediatamente. De qualquer forma, matar um, dois, cem deles também não solucionaria o problema — sempre haverá outro.
A solução, portanto, é cobrir o corpo todo com o lençol. O calor atordoará o corpo, mas o desconforto da temperatura não se compara ao horror de dormir exposto ao inimigo. De qualquer forma, se a vítima, suada, decidir descobrir-se um tantinho que seja, logo um zunido oportunista far-se-á ouvir, jogando-a novamente para debaixo das cobertas.
Aqui, cabe mais um comentário sobre o zumbido dos pernilongos. Ele não é emitido por ondas sonoras, como se poderia supor. Trata-se de uma vibração no espaço-tempo propagando-se através de abalos dimensionais diretamente para dentro da mente da vítima. Agora, por exemplo, nosso personagem, além da coberta, pôs sobre a cabeça dois travesseiros, na tentativa de tampar os ouvidos, mas continua a ouvir os zumbidos.
E há muitos outros aspectos da engenhosidade destes insetos que merecem reflexão. Por exemplo, os animais, que surgem nas férias de verão, têm por conveniente habitat justamente as casas de praia e de campo. Apreciam, também, atacar regiões das costas impossíveis de serem coçadas ou voar daquele jeito inconstante que, embora menos eficiente como locomoção, dá às sombras projetadas um ar mais fantasmagórico e hipnótico.
Em sua cabana em meio ao exército, rodeado pelos mosquitos, porém, Marc não pensou em nada e limitou-se a se enfiar mais no saco de dormir, tapando os ouvidos com as mãos, inutilmente.

facts diver, literatura de front(page): jornal do futuro

Silvio Santos é um senhor de idade avançada que atira aviõezinhos de dinheiro no meio das multidões para se divertir e divertir todo o mundo; não sei o que ele tem a ver com o Banco Panamericano e o Grande Calote (aliás, nem sei qual calote que é esse), mas logo deixo de prestar atenção e vejo ali num canto outro rosto conhecido e é o de um bom-moço, sem sombra de dúvidas, é BILLY BOLHA e ele diz que já soprou o canudo três vezes - perda de tempo, policiais, Will é um homem SÉRIO, pai-de-Família e cordial visitante de todas as noites Bresilafora, como podem sequer pensar que ele tomou alguma coisinha antes de pegar o volante? Ele não é como aquele outro, ali, com o carro bem no meio da lanchonete, que barbaridade... Bom, também é certo que pelo metrô é que não o encontrariam, ele que é um homem tão SÉRIO e OCUPADO, não tem condições de perder seu tempo valioso dando com a cara na porta das estações fechadas da linha Azul. Não ele.
Olá, Billy! Adeus, Billy! Espero que a "dança das cadeiras" não te aborreça, Billy!
E lá vai o Nenê preso, enfim. E lá vai o Assanger processado, HERÓI DE NOSSO TEMPO, e falam de conspiração - ha! ha! - os putos.
...
Pelo menos está mais quente que aqui, pena que chove tanto... Espero que meu vôo não atrase - mas eu também não posso me atrasar pro vôo, preciso voar!
(que com essa chuvarada a lentidão não vai ser mole, não)

20101214

20101213

A República dos Coxinhas

Um dia, ir ao estádio no Brasil será o mesmo que na Europa. As pessoas entrarão sem bagunça e assistirão aos jogos sentados em cadeiras confortáveis e com boa visibilidade. É certo que isso vai acontecer, com ou sem a Copa de 2014, porque este é o mundo que estamos construindo. As pessoas se preocupam demais em rotular e criticar ecochatos, feminazis, antitabachatos, veganazis e pessoas que não gostam de piadas de judeus ou de corintianos, mas poucos percebem qual é o verdadeiro mal do nosso tempo.
Na Índia, cidadãos de bem denunciam, mandando vídeos gravados por eles mesmos para um site específico, seus vizinhos que desrespeitam leis de trânsito. Na Europa, já disse, assiste-se ao futebol sentado e em silêncio. E o Brasil, meus amigos, está caindo no mesmo buraco.
Existe desmatamento e existe gente que protesta pelada contra ele. Existe crueldade com animais e existe gente que borda os dizeres “100% vegan” em todas as suas peças de roupa. Existe câncer, racismo, sexismo e existem pessoas que, ainda que bem intencionadas, se tornam insuportáveis. Mas nenhum desses é o nosso problema. São problemas antigos ou são frutos de problemas antigos e são coisas que, bem ou mal, estamos resolvendo, coisas com as quais estamos lidando.
O mal do nosso tempo... O mal do meu tempo é cinema com lugar marcado.

MACACOMOÇA (meorgulhotantodefotografarreflexosaoacaso)

20101208

INSTRUÇÕES DE MÁXIMA IMPORTÂNCIA



O Homem aprende que a desobediência é o que cria pêlos na cara.

faits divers, literatura de guerrilha: wikileaks

julian assange é um homem branco de cabelos brancos e foge por túneis negros de paredes negras de homens brancos de cabelos negros com cassetetes negros de contornos vermelhos que querem lhe mostrar o que é verdadeiramente o estupro a violação anal que consiste em inserir um cassetete negro no ânus do indivíduo a ser educado até que o cassetete negro adquira contornos vermelhos portanto você deve entender porque ele foge ele que é um revolucionário porque quando criança um deus azul de olhos verdes lhe disse garoto você nunca deve mentir nem tolerar mentiras e então ele decidiu que isso era verdade e usando sua mente que se estende uma mente de telepata ele invadiu com projeções astrais transparentes de olhos brancos os mais fechados bancos do mundo capitalista e de lá tirou planos de dominação e de entreguismo e de venda e de compra e de morte e disse a todos vejam só o que eles fazem e então agora querem matá-lo porque ele é um herói de talentos diferenciados e todos os heróis devem morrer em poças negras de sangue vermelho ele que vive em iglus feitos de chips verdes de coração branco agora um technhomem um ubermensch benigno feito de cabos negros e coração de silício que voam no céu arco-íris de cores muitas e deixam pó mágico cair sobre as nossas cabeças dizendo amanhã vão chegar homens novos de cores novas com vozes que viajam pela luz e não pelo som homens do vácuo que vão extinguir o vácuo preenchê-lo com cores novas e sons e agora ele foge porque é humano assim como todo herói e é essa sua perdição ter esporrado em alguém essa sua queda como a de todos um pecado original de uma cor só uma cor sem nome que deus egoísta guardou para si e suas maquinações e então toda a biblioteca de um mundo em fuga dentro desse homem explodindo em confete um enforcamento ao vivo pois assim sem sangue e o mundo segue o mesmo era um falso messias anticristo sem chance e os segredos continuam mudos e de cor cinza morta enquanto eles matam nossas mães.

20101207

Parte 5 - Depois eu fiquei (chato) assim.

Foram, portanto, a consciência do distante e a inconsciência, também, que escondem essas canções todas, todas elas do exílio, todas elas sobre a palmeira e o sabiá e nunca sobre aquilo que doía, porque o que dói, agora, é essa falta infinita da palmeira e do sabiá, minha primeira visita ao sentir São Paulo, ainda que antes, muito antes eu já vivesse um saber a cidade que devo em grande parte ao namorar uma arquiteta ou urbanista potencial, alguém que olhava para os prédios e me dizia mais do que gosto ou não gosto. Mas saber não é sentir e foi só quando eu primeiro vi no céu a falta do cruzeiro, só quando eu primeiro sonhei numa língua que não era minha pátria e quando me faltaram o pão francês e a mortadela (esses dois que nem nossos são!) e um suco de laranja que prestasse, foi só então que eu senti além de saber, muito embora sentisse pouco e soubesse menos.

Foi lá, também, que eu aprendi a sentir uma cidade (assim, genericamente) ou a me sentir parte de uma cidade, que são conceitos parecidos, acho, embora nitidamente diferentes. E foi por isso que no final de 2009, quando eu voltei para casa finalmente em um dia chuvoso que não podia ser mais propício e fui a um restaurante com meu pai e meu irmão, embora eu não me lembre se era uma pizzaria ou um restaurante japonês e minha memória cisme em fingir que era uma lanchonete, foi por isso que neste dia específico eu já tinha o plano de contrariar toda a minha saudade e todo o meu ufanismo e incorporar à minha recém retomada vida paulistana o elemento máximo de minha vida pregressa inglesa, ou seja, uma bicicleta.

O plano era ousado, para dizer o mínimo: envolvia não apenas desembolsar uma quantia relevante em um objeto que aumentaria meus riscos diários consideravelmente, mas também fazê-lo insensatamente, investindo não em um equipamento urbano, mas em uma bicicleta sem marchas ou freio nas mãos, desenhada para andar na praia ou nos asfaltos planos e bem cuidados da Europa que eu fingia negar. Dava, assim, a impressão de ser como aqueles mesmos arquitetos que, trazendo as idéias de fora, deixam nossa cidade tão pouco nossa ou como, sei lá, a Cow Parade de que tanto reclamam aqueles que clamam por um intervencionismo urbano mais paulistano, esquecendo-se, talvez, de que São Paulo é farta em sua própria linguagem de rua, nas pontas de suas pixações ou no preto de seus grafites e de que é absolutamente coerente ao espírito de Sampa trazer de fora tudo quanto pudermos, sem maiores pudores.

Seja como for, a idéia tinha algumas justificativas à época e há outras que eu poderia citar agora sem grandes receios, apesar de claramente terem sido criadas a posteriori, para explicar a decisão somente depois de tomada. Em primeiro lugar, no que diz respeito à inadequação de uma bicicleta caiçara, pesada e de guidão alto às ladeiras e ao asfalto truncado de nossas ruas, eu me defendia, então, com a desculpa prática de que eu não pretendia me aventurar para além das fronteiras do meu bairro e que, portanto, a questão era de menor relevância, devendo prevalecer o conforto maior que uma bicicleta dessas propicia nos passeios breves, em que a coluna ereta nos cai bem (embora eu posteriormente fosse descobrir que esta postura sentada seja, na verdade, danosa à coluna). Hoje, porém, todos podem ver que eu faço — e a verdade é que eu já então sabia que faria — percursos longos de dez, quinze quilômetros, às vezes tendo que descer uma via rápida como a Sena Madureira (rápida para uma bicicleta, vejam) ou tendo que subir o Everest que é uma Bela Cintra ou uma Brigadeiro Luís Antônio, tendo que brigar com os ônibus da Paulista, Vergueiro ou Joaquim Floriano, tendo que me apertar entre os carros da Lins e da Francisco Cruz, enfim, tendo que fazer tudo aquilo que uma bicicleta caiçara sem marcha e com freios nos pés não nasceu para fazer. Aos que levantam estes argumentos, eu talvez não tivesse resposta na época, mas agora eu diria que comprar uma bicicleta nunca foi uma questão de adequação e que, se eu quisesse andar em São Paulo com um veículo para o qual São Paulo foi feita, eu não teria opção ao carro, e que andar de bicicleta é tanto uma decisão pessoal quanto uma forma de ativismo, porque não se anda de bicicleta em uma cidade como São Paulo sem se estar protestando contra nosso trânsito, nossa visão motorizada de como o mundo deve ser etc. Assim, uma bicicleta inadequada me parece tão propícia quanto qualquer outra, se não for mais, me forçando, a cada buraco no asfalto, a cada trecho em que tenho que dividir a faixa com motoristas ignorantes, a lembrar que estou em São Paulo e que são esses alguns dos problemas da minha cidade. Mas também não é minha intensão fazer panfletismo aqui e é por isso que corro logo para minha última consideração a respeito da minha escolha cíclica, ou seja, a opção por uma bicicleta com freio no pé, o freio “contra pedal”, ao invés dos tradicionais v-brakes, na mão, que são o que mais se vê na bicicletas que teimam em circular por nossas vias hostis. Essa é, na verdade, a questão mais relevante dentre todas essas observações tediosas sobre bicicletas, porque ela envolve o entendimento da diferença principal entre andar de bicicleta e andar de carro, ao menos do ponto de vista desse texto, isto é, de sentir a cidade: andar de bicicleta é como andar a pé (só que mais rápido), é poder fazer qualquer caminho, poder parar e olhar uma árvore florida etc, ao contrário de um carro em que se entra e se sai do mundo; uma bicicleta é uma extensão de você, não algo externo como um carro e, da mesma forma, estar em uma bicicleta é como não estar, é seu corpo que roça os carros, quando a manobra não é rápida o bastante, é em seu peito que bate o vento e é sua cara que se dá a tapa.

E é mais ou menos por isso que comprar uma bicicleta foi meu segundo avanço no meu processo de internalização da cidade em mim ou de mim na cidade ou internacionalização nenhuma de nada em lugar nenhum, somente uma sensação de sentir que, francamente, já me basta.

20101205

TOKYO mon amour

história & veneno

em 1955 aos quatorze anos ricardo
rodrigues dos santos
um alemão exilado
sem nome(
e portanto
sem alma)
perdeu
(sempre perde-se)
chance única e prodigiosa de felicidade
(algo que ele como alemão nem mesmo merecia)
:
uma mocinha de quinze
(ou dezesseis)
(ou treze)
anos
que amava.
ninguém
(de importante)
chorou.

"
meu peito é um rombo
de sangue seco
vazio
anticoagulado e vazio
e seco
sem mira e sem tiro
estéril ainda bem.
eu
sou um míssil
v4
oco
falho
sem explosão.
eu sou sem explosão."

um pouco foi escrito sobre ele
(todos sabem):
um pouco discreto
(um por
co secreto)
detonou zyklon ontológico penetrante como a alma de um zumbi
algo-herói algo-épico
(por critérios gregos)
sem espada
rasgante
(pequeno)
grande
, um poeta sim
(naquilo que há)
faltaram-lhe vitaminas
(garoto vitorioso
)perjúrio(perdeu)
fugitivo
(tudo) um déjà vu
sem sangue.

20101202

Mais uma obra do capitolismo cristão




Um menino Jesus traquinas, que subia nos telhados, quebrava os cântaros alheios, brincava com leõezinhos, apaziguava dragões, transformava crianças em carneiros e, vez ou outra, fazia também malvadezas. Zangado, podia amaldiçoar e punir com a morte quem lhe enfrentasse. Outras vezes, para tirar uma história a limpo e provar que não tinha culpa de uma morte casual, ressuscitava mortos para que contassem o que aconteceu, depois os mandava dormir o sono eterno outra vez.

fonte: http://www1.folha.uol.com.br/livrariadafolha/839763-menino-jesus-era-traquinas-e-ate-fazia-malvadezas-mostra-livro-de-padre.shtml

ninguém segura os ANARQUISTAS