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20101101

Trecho de uma biografia incerta (ou: Tampão)

O Rapaz veio me perguntar as horas e era um bocado claro pra mim que horas eram, com o relógio imenso da estação batendo seis horas e tudo o mais, mas mesmo assim eu parei de andar e meti a mão no bolso pra tirar o celular com prontidão e lhe disse que eram quinze para as três, ele me agradeceu e saiu correndo para a plataforma amarela. Me senti meio culpado com aquela troça gratuita, mas continuei meu caminho como quem continua a cozinhar um ensopado depois de precisar abanar os gatinhos da cozinha por eles deixarem o ambiente sujo demais, em suma: não me abalei mais.
Da segunda vem que o Rapaz apareceu no meu caminho, isso foi uns três dias depois e mais ou menos na mesma região, admito que meu coração se apertou um pouquinho e eu não resisti, cheguei e a ele e lhe disse "oh, Rapaz, que parece tão perdido e faminto, veja que sou de bem e não lhe quero mal algum e por isso lhe convido: vou beliscar uns provolones e bebericar alguma coisa qualquer ali na próxima rua e queria muito sua companhia, pois que pretendo fumar enquanto belisco e beberico e detesto fumar sozinho - que me diz?". O Rapaz aceitou de bom-grado e logo que nos instalamos tirou de seu colete cheio de bolsinhos alguns aparatos que me pareceram extremamente misteriosos. Enquanto o balconista botava na nossa frente o pratinho com os provolones boiando em óleo temperado, os palitos de dente e dois cálices gelados de steinhaeger, o Rapaz abriu uma caixinha aqui, outra ali, repetiu alguns gestos e por fim tirou daquela operação toda dois cigarros perfeitamente enrolados. Assombrado, peguei por meu o que estava mais próximo de mim, ele o acendeu em meus lábios e passamos a fumar enquanto beliscávamos as bolinhas de queijo e bicávamos nossos cálices. Minha vergonha era grande demais para lhe perguntar o que exatamente eram aquelas coisas todas e como era ele capaz de produzir tabaco de tamanha qualidade com aquela rapidez, mas não foi preciso - uma vez dadas as primeiras baforadas, o Rapaz começou a me contar sua história.
Ele era um jovem talento do violino e saiu de sua cidade natal, onde era reverenciado por todos como filho-prodígio daquela terra tristonha, em busca de seu maior sonho. Isso ele não me disse, ou, se disse, o destilado alemão prontamente me apagou da mente.
É esperado que eu lhes diga que não me lembro como cheguei ao pequeno apartamento dele, mas aqui eu tiro minha carta da manga: me lembro de tudo, com perfeição! De como nossa conta foi gentilmente encerrada e seguimos em frente na rua da Liberdade, virando à esquerda na Joaquim Iago e pegamos a terceira à direita, depois da Praça Ípiro, e subimos no prédio verde da esquina entre a Filipina e a Guarda Florestal. Como podem ver, o álcool passa por meu corpo de maneira estupendamente rápida quando ingiro qualquer quantidade de gordura temperada.
Lá dentro, enquanto fumávamos outro de seus incríveis cigarrinhos, o Rapaz me mostrou um jogo de cartas absolutamente incompreensível, acho que dizia se chamar Labuta ou então Fagote (nem mesmo o nome parecia ter sentido, de modo que eu não fui capaz de retê-lo na memória). Jogamos e rimos a noite inteira, até que eu cai no sono com a cabeça apoiada num batente carcomido. Sonhei com coelhos, com Irene e com uma escola muito-muito grande, mas exatamente como isso tudo se articulava me escapa da razão até hoje.
O dia seguinte me pegou desprevenido, como se diz: com a calça nos pés - não literalmente, óbvio, já que eu nunca levo minhas calças abaixo sem ser em meu próprio quarto ou banheiro. O Rapaz tinha ido embora, mas deixara um bilhete simpático, em que dizia ter ido comprar breu para o violino e depois se apresentar em exame no Conservatório Prad, e também um prato com ovos frios. Aquilo me embrulhou o estômago, pela simples lembrança de que Irene teria adorado comer aqueles ovos com o pão preto que sua mãe fazia aos sábados...
Virei as costas e deixei o apartamento, perturbado com aquela nostalgia toda. Quem sabe, algum miasma do meu sonho permanecesse ao redor de minha cabeça, precisava ventilar o couro cabeludo com urgência! Foi assim que cheguei em casa, meia hora de passo rápido (quase um trote, na verdade) depois: enxarcado de suor, com olheiras do tamanho de pires e sem as minhas chaves.

20101006

Desfeitura

(Retomada de um antigo trabalho, ainda inédito)

Documento de ficção.

A dor da criação, o parto e o aborto das idéias e das matérias. Sonho urbano, captado como se pôde.

20100516

Mas que melodia bela é essa, meu Pacheco?

Pacheco terminou o solo no trompete remexendo os lábios, porque fazia uns dias que estava só no contrabaixo. Como é uma região sensível, só isso já deu tempo de ficar com uma estranheza.

“Acho que essa eu nunca tinha escutado você tocar.”
“Ah, já tem uns anos que caiu do repertório. Mas é boa, eu gosto.”
“Como você gosta de tocar?”
“Como assim?”
“É mais com a mão ou com a boca?”
“O que for jazz, bossa, tá valendo.”

Importante dizer que Pacheco verdadeiramente sorriu-se com isso. Ele foi guardar o trompete na maleta num canto. O baixo continuava ainda do lado de fora e com as cordas já perdendo o brilho.
Lia ficou um tempinho em silêncio porque também era legal ver o Pacheco guardando os instrumentos, recolhendo alguns cabos ainda soltos, tirando os amplificadores da tomada.

“E é só isso?”
“O que? Tocar?”
“Não, que você toca.”
“O que mais que existe pra se tocar?”

A Lia lembrou que precisava ligar pra mãe e avisar uma coisa das compras, pegou o celular e saiu. Isso deu tempo pro Pacheco terminar de fechar sozinho o estúdio. Faltavam: ar-condicionado, que foi desligado mas mais umidificava que qualquer coisa; computador; o som tirou-se da tomada. Por instinto Pacheco pegou um pacote de CDs virgens pra levar pra casa enfiado na pasta. Recolheu trompete, deixou o baixo lá mesmo, bateu a porta e trancou. Abriu de novo porque esqueceu do afinador pro José, que tinha pedido.

E de trás da porta saíram Goran Tortavic, Jan Kormeca, Ilja Paracov e Grande Elenco a tocar Kalasnjikov! O trompetista era Paracov e jogou Pacheco no chão enquanto terminava a ponte que levava ao refrão e foram-se em opa, e foram-se em opa, e foram-se em opa e OPA!

A Lia voltou assustada. Pacheco levantou-se do chão, com o mindinho possivelmente quebrado. Lia até choramingava um pouquinho, meio emocionada, mas aí ele tirou o trompete da maleta, arremessou-o com força pro alto e ele bateu na lâmpada,
catouô baixossem capa trancou tudde novo
e foram-se em opa, e foram-se em opa, e OPA!

Mas afinal, o que havia-se de fazer?