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20110919

renascença cristã no burburinho

Duas pessoas sentadas são essencialmente um conluio, conspiração - ainda que não saibam. Adicionando-se álcool, os acordos & planos se tornam ainda mais confusos & ainda mais ambiciosos (em toda a acepção dessa palavra) & de repente toda palavra (toda sílaba!) tem dezesseis degraus de significação, cada fonema saindo da minha boca tem uma nuance secreta que flutua como nota musical mecânica que abre cofres hi-tech. Toda palavra é um abre-te-sésamo, podemos dizer, mas as portas estão todas invisíveis & são iguais & não se sabe para onde levam.

Aí eu levanto e vou ao banheiro e deixo ela sentada esperando porque sinceramente eu não faço mais idéia do que tou dizendo e no banheiro lambuzado de espelhos eu me olho totalmente vestido e penso em me masturbar mas lembro da minha regra - masturbação em banheiros, só na escola, só quando tiver pelo menos outra pessoa na cabine ao lado (e aqui nem tem cabine ao lado) então desisto e só vomito no chão todo e saio.

(é bom lembrar que contrariando a opinião popular o álcool não muda quem você é & sim quem os outros são & por isso existem pessoas que ficam muito melhores depois da cachaça & existem pessoas que ficam piores & existem pessoas que ficam outras mas ainda assim.)

Quando eu chego a conta já foi paga e alguém levou a outra cadeira embora, nada na mesa, só um copo tombado, meio triste, mas é a vida, o bar totalmente lotado e pulsante e irritante e barulhento e vivo (isso é negativo) tremendo em um ponto só que nem um beija-flor balançante ou um átomo vibrante e televisões por todos os lados silenciosas como se estivessem mortas, e aí você vira e passa pela primeira pessoa que vê (uma mulher falando no telefone na porta do bar, na verdade escutando alguém falar) e simplesmente agarra, com as mãos e a boca, e o gosto de cigarro mais do que a língua (mas a língua vem) é a experiência (muito mais agradável do que se imaginaria, caso você não fosse fumante), desisto em uns 15s e a mulher me olha meio feio, saio de lá por uma fresta.

E então não há resposta nenhuma, claro, não se deve esperar respostas nem narrativa, frustração garantida, só alguns passos ruabaixo ou acima, no horizonte alguns robôs dançam lenta e languidamente algum tango desfiado. Não é nem mesmo possível imaginar uma casa agora.

20101118

Parte 1 - O cenário

São Paulo é feita de toneladas e toneladas de carne, ferro e concreto. Cada porçãozinha disso não é uma célula, como exigiria a metáfora, não é um pedaço do todo, são todos eus, eus, eus. Por isso a cidade é tão grande e horrível, porque cada prédio é eu, cada muro é eu e todos os eus se fecham dos outros, se escondem, se expõem enquanto eus.
São Paulo tem muros demais e eles falam. Não são as buzinas, não são os motores nem os gritos, não são as risadas que ainda hoje se ouve, são os muros que falam por São Paulo. É o concreto liso que escurece impotente quando as motos zunem, é o tijolo exposto sob a tinta seca que envelhece com a gente, que se repinta porque mente, em que mijam os cães e os bêbados, em que se apóiam as velhinhas e os que esperam o ônibus, tudo isso é grito. Como é grito os desenhos, uns mais bonitos que tudo, outros assim como sujeiras de letras de pontas agudas anunciando amores e ódios.
São Paulo tem carros demais e eles não andam. Os fluxos são orgânicos, os caminhos são os mesmos, os destinos também. Em São Paulo, é assim: o destino ou é Centro ou é Bairro. E sempre demora.
São Paulo tem gente demais e, falem o que falarem, humanidade demais, também. A cidade tolera todo mundo, pena que até os intolerantes. Gente, tem de monte; às vezes, falta gentileza.
São Paulo tem comidas demais e elas vêm de toda parte. E elas ficam por aqui, crescem, se misturam como tudo se mistura em São Paulo, como receitas que nascem e morrem umas nas outras e de que nos orgulhamos como nos envergonhamos de nossa fome, que São Paulo também tem demais.
São Paulo tem males demais e eles são tão nossos quanto o resto. Outras cidades também têm seus problemas, seus Godzilas, suas invasões alienígenas, suas invasões por nazistas, suas invasões por turistas sexuais, suas invasões por ladrões de bicicletas, seus pervertidos no metrô ou o que quer que seja que as outras cidades têm, mas a gente tem nossa pequenez imensa, nossa fartura de miséria, nosso individualismo coletivo, nosso orgulho vira-lata, enfim, nossos oximoros maleducados.
São Paulo tem mais coisas, também, mas são coisas demais.