20130215

A história de Y. (versão estendida)

Y. defendia a extinção das segregações baseadas em gênero. Ele era homem, branco, não-pobre e, até onde se sabia, heterossexual, o que o colocava em uma posição confortável na sociedade, mas um dia saiu às ruas revelando --- não por meio de um discurso acalorado, o que seria considerado adequado pelas mais variadas castas de nossa sociedade, mas através de uma saia frisada --- seu amor pelo crossdress: um Ed Wood com talento, dir-se-ia. O mundo das artes foi tomado de assalto.
Nos dias que se seguiram, jornais reportaram o fato com manchetes alarmantes acompanhadas da foto de Y. em um vestidinho tomara-que-não-caia estampado e de depoimentos do padeiro, do jornaleiro, dos vizinhos: não imaginávamos nada, sempre nos pareceu um sujeito tranquilo, sempre nos pareceu um cara normal. A resposta da parcela engajada da população ao tom conservador das matérias foi ainda mais barulhenta, o que alimentou um debate acalorado na mídia impressa e nas redes sociais.
Passado algum tempo, consolidou-se a ideia de que Y. era só um cara que gostava de roupas de seda e não queria nada apertando seu entrepernas, o que era bastante compreensível para a maioria dos homens, embora estes não o admitissem publicamente. Tudo parecia assentado até um dia, quando Y. se envolveu em um incidente ao tentar usar o banheiro feminino de um restaurante. O evento resultou no primeiro debate público de que tenho conhecimento da questão de divisão de gêneros em banheiros públicos no Brasil, de forma que mesmo o desconforto no momento (e o prolongamento do desejo de mijar) acabaram revertidos para o Bem, de certa forma.
Contudo, a experiência de Y. não parou por aí. Em algum momento aí no meio, houve a revelação de que Y. não era um heterossexual "vestido de mulher", mas sim um bissexual-em-termos --- mas, diante de todo o resto, a notícia não surpreendeu ninguém. Ocorreu que, dia desses, chamaram atenção para o fato: Y. não apenas trocou as calças por saias, num movimento reverso à Revolução Feminina, mas também passou a portar barbeado rente, cabelo longo, maquiagem. Depilava o corpo todo (in-tei-ri-nho), usava produtos de beleza, se perfumava. Pegava homens. Veio a constatação: em sua crítica aos papeis baseados no gênero, Y. acabou por criar uma fantasia de mulher que adotava todos os aspectos que a sociedade por ele criticada atribuía a ela. A personagem que ele criou se submetia às imposições estéticas criadas pela sociedade machista, era heterossexual-em-termos, usava o banheiro considerado adequado ao seu gênero etc.
Y. percebeu, então, que para alcançar seus reais intentos, precisaria se transformar em uma mulher que não usasse roupas consideradas tipicamente femininas, não se depilasse, não usasse para si mesma a flexão feminina das palavras. Deixou a barba crescer, comprou cuecas, se livrou da cera de depilar.
Mas isso não era o suficiente. Não bastava deixar de obedecer a estereótipos, era preciso subvertê-los. Como mulher moderna, Y. assinou o pay-per-view do futebol, passou a coçar o saco em público e a cuspir no chão. E não parou por aí.
Passadas algumas semanas, Y. podia ser encontrado gritando obscenidades para as mulheres que passavam na rua. Familiares afirmavam tê-lo ouvido citar posts do Testosterona no almoço de Páscoa e três testemunhas juraram que ele usou a expressão "macho alfa" em ao menos duas ocasiões. Y estava fora de controle.
À misoginia, aliou a homofobia e, por que não?, o racismo. Passava madrugadas na internet pesquisando novos comportamentos ultrajantes para colocar em prática.
Em resumo, Y. havia se transformado em um verdadeiro monstro, quando um colega antropólogo e psicanalista mencionou o fato de que ele incorria no mesmo erro do início de sua empreitada, apenas invertendo-o. Percebendo horrorizado em quê se transformara, Y. correu para sua casa, tirou às pressas o macacão de lumberjack e sentiu, pela primeira vez em meses, o toque suave de um vestido de algodão em sua pele.
Desde então, Y. nunca mais ligou para o que os outros pensavam.



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