20101118

Parte 1 - O cenário

São Paulo é feita de toneladas e toneladas de carne, ferro e concreto. Cada porçãozinha disso não é uma célula, como exigiria a metáfora, não é um pedaço do todo, são todos eus, eus, eus. Por isso a cidade é tão grande e horrível, porque cada prédio é eu, cada muro é eu e todos os eus se fecham dos outros, se escondem, se expõem enquanto eus.
São Paulo tem muros demais e eles falam. Não são as buzinas, não são os motores nem os gritos, não são as risadas que ainda hoje se ouve, são os muros que falam por São Paulo. É o concreto liso que escurece impotente quando as motos zunem, é o tijolo exposto sob a tinta seca que envelhece com a gente, que se repinta porque mente, em que mijam os cães e os bêbados, em que se apóiam as velhinhas e os que esperam o ônibus, tudo isso é grito. Como é grito os desenhos, uns mais bonitos que tudo, outros assim como sujeiras de letras de pontas agudas anunciando amores e ódios.
São Paulo tem carros demais e eles não andam. Os fluxos são orgânicos, os caminhos são os mesmos, os destinos também. Em São Paulo, é assim: o destino ou é Centro ou é Bairro. E sempre demora.
São Paulo tem gente demais e, falem o que falarem, humanidade demais, também. A cidade tolera todo mundo, pena que até os intolerantes. Gente, tem de monte; às vezes, falta gentileza.
São Paulo tem comidas demais e elas vêm de toda parte. E elas ficam por aqui, crescem, se misturam como tudo se mistura em São Paulo, como receitas que nascem e morrem umas nas outras e de que nos orgulhamos como nos envergonhamos de nossa fome, que São Paulo também tem demais.
São Paulo tem males demais e eles são tão nossos quanto o resto. Outras cidades também têm seus problemas, seus Godzilas, suas invasões alienígenas, suas invasões por nazistas, suas invasões por turistas sexuais, suas invasões por ladrões de bicicletas, seus pervertidos no metrô ou o que quer que seja que as outras cidades têm, mas a gente tem nossa pequenez imensa, nossa fartura de miséria, nosso individualismo coletivo, nosso orgulho vira-lata, enfim, nossos oximoros maleducados.
São Paulo tem mais coisas, também, mas são coisas demais.

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