20101128

Parte 4 - Um dia, eu fui assim

Houve um tempo em que eu dormia tarde e acordava cedo. Pro café da manhã, por preguiça e economia, eu só tinha pão, que eu mantinha congelado, e manteiga boa, ambos guardados com etiquetas com o meu nome, para evitar que fossem usados pelos outros que compartilhavam a cozinha. Nesse tempo, eu fazia o pão na torradeira escutando no ipod qualquer coisa que me lembrasse de casa e eu passava a manteiga nele, e eu me refiro ao pão, claro, não ao ipod, e o segurava, o pão de novo, com a boca enquanto saía correndo, porque eu sempre acordava já meio atrasado.
Quando eu saía, embora fosse verão, estava sempre frio. Eu abria a porta pra rua de uma vez e encarava direto e então eu pegava a minha bicicleta e pedalava pra aula enquanto engolia o pão com manteiga e o frio que batia de frente, o vento que batia de frente.
Tudo era estrangeiro. Meus amigos, minhas aulas, o pão com manteiga, o céu à noite, e até eu, estrangeiro ali, estranho, alheio, alienígena. Todo o tempo era uma procura de defeitos, uma procura de razões pra gostar mais de casa, para querer voltar pra casa. Quando eu estava em Paris, era só Buenos Aires e vice-versa. Mas eu também era dali. Eu conhecia os caminhos, eu tinha meus truques, eu pegava o trem pra Londres e me virava lá, no metrô, nos teatros, nos pubs que não cobravam mais caro e que tinham bandas de rock ao vivo. Eu tinha meu pão inglês, minha manteiga inglesa e, às vezes, um leite inglês com o equivalente inglês do Toddy. Eu ia pra aula e era mais um ali, como todos os outros eram, até comer no refeitório da faculdade, eu comi.
E, porque eu era dali sem ser, eu percebia as coisas; eu não tinha o deslumbre quieto (porque passivo) dos que se chegam a um lugar e veem pela primeira vez a torre Eiffel, o Cristo, o Big Ben ou os desenhos cravados na madeira do portão do Queen's College. Mesmo turista, meus passeios de punting eram só uma liberdade que eu tomava, não eram minha razão de estar ali, assim como um italiano pode um dia pagar o tíquete e entrar no Coliseu e se misturar com todas as outras línguas que se encontram por ali sem por isso ser uma língua a mais. Eu via, claro, tudo o que há de bonito, mas meus olhos eram críticos e, mais que isso, nostálgicos: eles tinham saudades e viam ali a falta de uma padaria, a falta de azeite bom nos restaurantes (menos o português), a falta de sentido das ruas, de calor das pessoas (e, por Deus, do clima), a falta da bagunça e da aleatoriedade que deveriam me nortear. Brazilian way, eu dizia quando saía sem saber pra onde, só acreditando que, indo naquela direção, a gente iria chegar onde quer que fosse.

20101126

20101125

literatura celular

E aí, como se fosse de papel, ela se dobra sobre si mesma e murmura uma ideia numinosa.

Ele desliga o som, mas finge que não ouviu nada - talvez seja hora de dormir. Outros dias e outros faróis acesos podem ajudar a torcer a linha do horizonte.

Se ao menos fosse de papel couché! Ela insiste, já sem saber o que estava dizendo. Ele diz que ela pare, que aquilo já tinha sido muito bonito e não precisava de conclusão ou réplica.

Ela não entende como uma coisa assim tão bonita pode gerar silêncio. A beleza que ela empresta para o mundo é para fazê-lo girar. Ele não entende como um narrador pode saber ao mesmo tempo o que pensam dois personagens. O narrador está sempre preso do lado de cá ou de lá. Se ele finge estar dos dois é só porque não está chegando a lugar nenhum com o que estava do seu lado.

Faróis apagados. Ela se desdobra e olha para fora. A porta se abre e acende a luz interna do automóvel. Ela se vê no retrovisor e resolve que vai dormir ali hoje - que ele pode subir e dormir na cama dela se quiser mas ela mesma não vai a lugar nenhum e nem o carro e nem aquela luz que insistentemente mostra para ela que os anos não vêm sozinhos e que tudo que tinha passado não se repetiria e nem seria melhor.

20101124

Sobre Benjamin sobre o ator




aktior spassiot liudi liubliut smatret liudi liubliut aktior on liobov liudiei.

aKtior prevoshodIt. Nam On spassiot.

pincenê

20101123

Divulgação gratuita

Parte 2 – A história das pessoas que não são eu

Pedro toca saxofone. Quando ele tinha 11 anos, algum tio de gostos estranhos chegou para o natal com uma caixa preta aveludada e lha entregou animado. Quando o menino destravou os trincos e tirou o instrumento – muito mais bonito que qualquer brinquedo que já tivesse tido –, os pais foram tomados de desespero. Violões, flautas-doces, harmônicas, são todos instrumentos chatos e barulhentos nas mãos de uma criança, mas o saxofone, além de mais chato e barulhento, é também muito mais caro.
Mas Pedro tinha jeito. Depois de algumas semanas em que a casa parecia ter se transformado em uma imensa orgia de gatos, as notas foram se acertando e em pouco tempo ficou óbvio que ele havia nascido para aquilo.
Quando a família se mudou para um condomínio e os vizinhos os viram chegando com aquela caixa, logo começaram as reclamações. Já na primeira noite, o síndico tocou no interfone avisando que não era permitido barulho após certo horário.
Mas assim que Pedro começou a tocar, ninguém mais reclamou. As músicas que ele tocava, fossem quais fossem, soavam mais lindas que qualquer outra coisa que os vizinhos já tivessem ouvido e a decepção geral era tamanha quando chegavam as 22h e o menino paravam que, na semana seguinte, o síndico teve que interfonar de novo, avisando que a restrição de horário não se aplicava às músicas que Pedro tocava.
E Pedro tocava. Quando Pedro estava muito feliz, ele ia para a varanda e tocava o sax para a noite. E quando ele estava muito triste, como no dia em que seu tio morreu doente, ele se trancava no quarto e tocava versões de jazz e umas composições novas que ninguém sabia bem o que eram, além de lindas.

Amanda saía todas as noites. Ela trabalhava cedo e dormia pouco, mas isso não a impedia de sair sempre com gente nova, para lugares novos. Amanda tinha vinte e cinco anos e eram muito poucos para se cansar e demais para ficar parada.
Numa segunda, alguém talvez a encontrasse numa festa que ainda não tinha acabado em algum sítio no interior, buscando alguma carona que a deixasse direto no trabalho, que tempo não teria nem pra um banho. Na terça, amanheceria na casa de alguém que conheceu na noite anterior, vestiria uma camisa dele e sorriria enquanto saía pra rua ainda fechando o zíper. E ainda com a camisa dele ela iria para uma balada friendly, onde se manteria totalmente sóbria e riria até o diafragma doer com seus amigos bichas que encontrava e fazia por ali. Na quarta, um samba-rock num teatro, na quinta, tem festa na USP e na sexta ela vai pra Augusta e só volta na segunda ou quando alguém chamar ela pra um sítio, pra uma festa. E sempre que alguém vir ela, ela vai estar rindo e linda, e sempre em boa companhia.

Eduardo organiza ataques DDoS. Ele escolhe sites de empresas com logotipos muito feios ou cujo SAC o tratou mal e os tira do ar. Senão, ele programa aplicativos para celular ou extensões para navegadores. E ele cria contas de e-mail, msn, facebook, ele cria personagens incríveis e conhece gente e cria laços, mas um dia esses personagens somem e só ele fica.

20101120

Tenho saudades tuas.

E já agora ficas a saber que eu virei chalupa.

A espada e a rosa, João Nicolau, 2010.

20101118

Parte 1 - O cenário

São Paulo é feita de toneladas e toneladas de carne, ferro e concreto. Cada porçãozinha disso não é uma célula, como exigiria a metáfora, não é um pedaço do todo, são todos eus, eus, eus. Por isso a cidade é tão grande e horrível, porque cada prédio é eu, cada muro é eu e todos os eus se fecham dos outros, se escondem, se expõem enquanto eus.
São Paulo tem muros demais e eles falam. Não são as buzinas, não são os motores nem os gritos, não são as risadas que ainda hoje se ouve, são os muros que falam por São Paulo. É o concreto liso que escurece impotente quando as motos zunem, é o tijolo exposto sob a tinta seca que envelhece com a gente, que se repinta porque mente, em que mijam os cães e os bêbados, em que se apóiam as velhinhas e os que esperam o ônibus, tudo isso é grito. Como é grito os desenhos, uns mais bonitos que tudo, outros assim como sujeiras de letras de pontas agudas anunciando amores e ódios.
São Paulo tem carros demais e eles não andam. Os fluxos são orgânicos, os caminhos são os mesmos, os destinos também. Em São Paulo, é assim: o destino ou é Centro ou é Bairro. E sempre demora.
São Paulo tem gente demais e, falem o que falarem, humanidade demais, também. A cidade tolera todo mundo, pena que até os intolerantes. Gente, tem de monte; às vezes, falta gentileza.
São Paulo tem comidas demais e elas vêm de toda parte. E elas ficam por aqui, crescem, se misturam como tudo se mistura em São Paulo, como receitas que nascem e morrem umas nas outras e de que nos orgulhamos como nos envergonhamos de nossa fome, que São Paulo também tem demais.
São Paulo tem males demais e eles são tão nossos quanto o resto. Outras cidades também têm seus problemas, seus Godzilas, suas invasões alienígenas, suas invasões por nazistas, suas invasões por turistas sexuais, suas invasões por ladrões de bicicletas, seus pervertidos no metrô ou o que quer que seja que as outras cidades têm, mas a gente tem nossa pequenez imensa, nossa fartura de miséria, nosso individualismo coletivo, nosso orgulho vira-lata, enfim, nossos oximoros maleducados.
São Paulo tem mais coisas, também, mas são coisas demais.

20101116

Only the young


ANARQUISTA [14.03.2010]

Anarquista

Fogo

Porrada

Punhos em chamas

Cocota

Viagem

Qu’est-ce que je faire? Unfaire!

Ou seje...


Depressão. Tesão. Fuga da prisão, quebra de lacres, rompimento de pedágios em altíssima velocidade, mas derrepente!: bossa nova, sacocheio. Tacar fogo na praia, correr com a roupa do corpo, correr sem roupa no corpo; queda do abismo. Grito, peito rasgado, paixão sem limites imaginários. Fronteiras, perseguição, bombas – “Matei um, matei um”... Três meses depois sozinho numa cabana solta no mato, bebendo urina. É o fim.

Bebi com eles, joguei e contei as piadas que eu sabia. Foi pouco, muito pouco.

Euzébio nasceu em 3 dias diferentes: 21 de março pelo RG, 22 de abril pela certidão de nascimento e 4 de janeiro pela sua mãe. Confiemos, pois, na mão direita de seu pai.

20101114



Ele tinha medo de mármore.
Era um idiota.


20101111

AZUL: tocar

estado é tudo!

horror
amor
estado

São Paulo para os paulistas

Existe esse movimento aí (nem sabia, mas era de se supor): São Paulo para os paulistas. Faz sentido.

São Paulo começou com padres importados de Portugal. Enriqueceu com trabalhadores manufaturados na Itália e até hoje nossa comida mais típica, aquela de que de fato nos orgulhamos, é a pizza. Depois, trouxemos japoneses, árabes... E fomos nos construindo, em muito, com braços do nordeste.

Se alguém me perguntar como reconhecer um paulista entre outros brasileiros, vou ter que dizer: procura alguém em um grupo impossível de pessoas cuja única semelhança seja a diferença. Isso aí que é ser paulista. A xenofobia e o preconceito são impraticáveis em São Paulo. Quem os pratica, portanto, não pode ser daqui (mesmo que seja).

Eu amo São Paulo. Mais do que dá pra entender. E eu quero que ela seja dos paulistas.

E por "paulista", eu entendo todo mundo.

20101110

MERGULHO E DOR DE CABEÇA

A dor de cabeça (cefaléia) pode aparecer nas seguintes situações:


NA DESCIDA
DURANTE O MERGULHO
NA SUBIDA
APÓS O MERGULHO



Na descida



Barotrauma de seios da face: (frontal/esfenoidal/ maxilar e mastóide) podendo ou não estar associado a sangramento nasal e náuseas. A cefaléia pode ser geral ou localizada no respectivo seio acometido.

Barotrauma de ouvido médio: a dor de cabeça está localizada ao redor da orelha ou dentro dela podendo irradiar-se para região temporal, cervical e na região central da cabeça. Associado a náuseas, tonturas e perda parcial da audição.

Barotrauma dental: relacionado a restaurações precárias. A dor é referida na mandíbula, pescoço, região da maxila do lado acometido, associado a dor na região central da cabeça.


No fundo



A retenção de CO2: é uma das principais causas de cefaléia durante e após o mergulho. Causada por erro na maneira de se respirar (respiração superficial) impedindo a troca correta dos gases no alvéolo pulmonar. A dor de cabeça é generalizada e pode estar associada a náuseas e vômitos (uma das principais características deste tipo de dor de cabeça é que ela passa gradativamente com o retorno da respiração correta – inspiração profunda e expiração total). Às vezes roupas muito apertadas impedem a expansão adequada do tórax podendo ajudar no seu aparecimento.



Síndrome têmporo-mandibular: (dor na articulação da mandíbula) ocorre quando não existe uma perfeita adaptação do bocal do segundo estágio ou ele está em condições precárias dificultando sua apreensão pelos dentes tendo que se desenvolver um esforço maior e contínuo para mantê-lo na boca. A dor é referida nesta articulação podendo se irradiar para região temporal e cervical posterior (nuca) muitas vezes associada a zumbidos.

Quando o snorkel é colocado sob a tira da máscara pode pressionar a região temporal desencadeando dor de cabeça por compressão dos vasos nesta região.



Barotrauma de máscara: além dos sintomas locais pode estar acompanhado por dor de cabeça.



O capuz apertado: pode levar a uma diminuição do retorno venoso da cabeça para o coração por compressão das veias do pescoço. Leva a dor de cabeça generalizada.



A posição ao mergulhar: pode desencadear dor de cabeça. A hiperextensão do pescoço continuada (olhando para frente) pode levar a uma cervicalgia (dor na nuca) com irradiação para a região occipital da cabeça (posterior).



Ar contaminado por CO: pode levar a dor de cabeça associada à náusea e vômitos. A característica é que este tipo de cefaléia tende a melhorar com a subida (dependendo do grau de contaminação) e respirando ar não contaminado (octopus do dupla). Quando os sintomas persistem na superfície pode se usar oxigênio para agilizar a melhora dos sintomas


Na subida


Barotrauma reverso: de ouvidos e seios da face.Pode ocorrer quando existe um edema, inchaço e sangue acumulado nos seios da face bloqueando a permeabilidade durante o mergulho. Esta situação também pode ocorrer quando se usa descongestionante antes do mergulho e o efeito acaba durante o mergulho (principalmente).

A dor pode ser severa localizada no seguimento afetado e tendo a dor de cabeça generalizada associada ainda sangramento no nariz e ouvido.


Após o mergulho



Doença descompressiva: também pode estar associada à neurológica, mas não é o sintoma predominante. A manifestação além da cefaléia é parestesia/paralisia dos nervos cranianos (como alterações dos músculos da face-retrações).


Algumas considerações relevantes



A mais freqüente dor de cabeça após o mergulho é o barotrauma de seios da face e retenção de CO2 (esta se inicia durante o mergulho).



A cefaléia do nadador é a dor de cabeça que aparece por uma associação de imersão na água fria e vaso-dilatação por esforço físico.



A pessoa que já tem enxaqueca controlada com uso de medicamentos contínuos ou esporádicos pode desenvolver crise de enxaqueca durante seu mergulho (pelo stress, água fria e roupa apertada e exercício). É fundamental que se controle a enxaqueca antes do mergulho ou se aparecer durante o mergulho é recomendado que se interrompa o mergulho, pois poder ocorrer uma crise forte acompanhada de vômitos e desorientação.



A crise hipertensiva com dor de cabeça (um dos sintomas) ocorre quando não existe um controle eficaz da hipertensão arterial e pode ser precipitada pelo stress, água fria e o exercício físico. O controle rígido dos níveis pressóricos acompanhado por um especialista é fundamental para se evitar uma crise hipertensiva durante o mergulho.



Percebemos assim que existem inúmeras causas de cefaléia cada uma com suas particularidades. È fundamental investiga-las e entende-las. Uma consulta com um especialista, muitas vezes pode tornar-se necessária.



Dr Hélcio

20101106



Está lá nos arquivos,
não mudamos nada.
Só mais oxidados.



20101101

Trecho de uma biografia incerta (ou: Tampão)

O Rapaz veio me perguntar as horas e era um bocado claro pra mim que horas eram, com o relógio imenso da estação batendo seis horas e tudo o mais, mas mesmo assim eu parei de andar e meti a mão no bolso pra tirar o celular com prontidão e lhe disse que eram quinze para as três, ele me agradeceu e saiu correndo para a plataforma amarela. Me senti meio culpado com aquela troça gratuita, mas continuei meu caminho como quem continua a cozinhar um ensopado depois de precisar abanar os gatinhos da cozinha por eles deixarem o ambiente sujo demais, em suma: não me abalei mais.
Da segunda vem que o Rapaz apareceu no meu caminho, isso foi uns três dias depois e mais ou menos na mesma região, admito que meu coração se apertou um pouquinho e eu não resisti, cheguei e a ele e lhe disse "oh, Rapaz, que parece tão perdido e faminto, veja que sou de bem e não lhe quero mal algum e por isso lhe convido: vou beliscar uns provolones e bebericar alguma coisa qualquer ali na próxima rua e queria muito sua companhia, pois que pretendo fumar enquanto belisco e beberico e detesto fumar sozinho - que me diz?". O Rapaz aceitou de bom-grado e logo que nos instalamos tirou de seu colete cheio de bolsinhos alguns aparatos que me pareceram extremamente misteriosos. Enquanto o balconista botava na nossa frente o pratinho com os provolones boiando em óleo temperado, os palitos de dente e dois cálices gelados de steinhaeger, o Rapaz abriu uma caixinha aqui, outra ali, repetiu alguns gestos e por fim tirou daquela operação toda dois cigarros perfeitamente enrolados. Assombrado, peguei por meu o que estava mais próximo de mim, ele o acendeu em meus lábios e passamos a fumar enquanto beliscávamos as bolinhas de queijo e bicávamos nossos cálices. Minha vergonha era grande demais para lhe perguntar o que exatamente eram aquelas coisas todas e como era ele capaz de produzir tabaco de tamanha qualidade com aquela rapidez, mas não foi preciso - uma vez dadas as primeiras baforadas, o Rapaz começou a me contar sua história.
Ele era um jovem talento do violino e saiu de sua cidade natal, onde era reverenciado por todos como filho-prodígio daquela terra tristonha, em busca de seu maior sonho. Isso ele não me disse, ou, se disse, o destilado alemão prontamente me apagou da mente.
É esperado que eu lhes diga que não me lembro como cheguei ao pequeno apartamento dele, mas aqui eu tiro minha carta da manga: me lembro de tudo, com perfeição! De como nossa conta foi gentilmente encerrada e seguimos em frente na rua da Liberdade, virando à esquerda na Joaquim Iago e pegamos a terceira à direita, depois da Praça Ípiro, e subimos no prédio verde da esquina entre a Filipina e a Guarda Florestal. Como podem ver, o álcool passa por meu corpo de maneira estupendamente rápida quando ingiro qualquer quantidade de gordura temperada.
Lá dentro, enquanto fumávamos outro de seus incríveis cigarrinhos, o Rapaz me mostrou um jogo de cartas absolutamente incompreensível, acho que dizia se chamar Labuta ou então Fagote (nem mesmo o nome parecia ter sentido, de modo que eu não fui capaz de retê-lo na memória). Jogamos e rimos a noite inteira, até que eu cai no sono com a cabeça apoiada num batente carcomido. Sonhei com coelhos, com Irene e com uma escola muito-muito grande, mas exatamente como isso tudo se articulava me escapa da razão até hoje.
O dia seguinte me pegou desprevenido, como se diz: com a calça nos pés - não literalmente, óbvio, já que eu nunca levo minhas calças abaixo sem ser em meu próprio quarto ou banheiro. O Rapaz tinha ido embora, mas deixara um bilhete simpático, em que dizia ter ido comprar breu para o violino e depois se apresentar em exame no Conservatório Prad, e também um prato com ovos frios. Aquilo me embrulhou o estômago, pela simples lembrança de que Irene teria adorado comer aqueles ovos com o pão preto que sua mãe fazia aos sábados...
Virei as costas e deixei o apartamento, perturbado com aquela nostalgia toda. Quem sabe, algum miasma do meu sonho permanecesse ao redor de minha cabeça, precisava ventilar o couro cabeludo com urgência! Foi assim que cheguei em casa, meia hora de passo rápido (quase um trote, na verdade) depois: enxarcado de suor, com olheiras do tamanho de pires e sem as minhas chaves.