É
quando me bate a saudade das coisas que eu deixei de ser pelo
caminho. Quando me pego sentado com a postura errada, olhando para a
tela do computador sem realmente enxergar as palavras e ouvindo no
fone o Gilberto Gil cantando sua versão do Bob Marley e eu me
lembro, é claro, daqueles dias na praia (quinze anos, salvo engano)
e daqueles meninos mais velhos (adultos, portanto) com o violão.
Eram
os únicos momentos em que eu conseguia ficar quieto (nesse sentido,
não mudei nada: sempre imensamente afetado pela hostilidade de um
ambiente e igualmente por sua receptividade), olhando a rebentação
e as meninas perto da fogueira, algumas de biquíni, ainda. Havíamos
passado a noite inteira zanzando pelo Centrinho, tomando sorvete e
mudando ocasionalmente de lugar para ver as meninas passando. Era
mais ou menos a isso que se resumiam minhas férias, imaginem só. E
eu diria que valeu a pena se pelo menos conseguisse me lembrar de
qualquer uma delas. Enfim. De qualquer forma, só as via passando,
mesmo, e então comíamos qualquer coisa e nossas amigas (que também
víamos só de passagem) nos chamavam para mais perto do mar.
Um
dia, choveu muito e a água passou sem tomar conhecimento do teto de
um dos quartos, molhando completamente alguns dos colchões. Os
adultos evidentemente não perderiam suas camas, então seríamos
forçados a espalhar os colchões restantes no chão e dormirmos
todos juntos. Éramos três meninos e duas meninas, ambas um pouco
mais novas e absolutamente maravilhosas. Isso foi logo na hora do
almoço, então nós três passamos o dia inteiro sem conseguir
pensar em qualquer outra coisa. A todo momento, discutíamos como
seria estarmos tão perto das meninas; os assuntos que
inevitavelmente surgiriam; as vontades que elas certamente já
sentiam e reprimiam, mas que, no ambiente propício, floresceriam; e,
principalmente, quem de nós seria o desafortunado que ficaria de
lado, sozinho, perdido. Ensaiamos movimentos, frases, formas de
sussurrar. Não posso dizer quanto aos outros, mas pessoalmente, me
apavorava pensar na possibilidade de chutar alguém, roncar ou peidar
durante o sono.
À
noite, repetimos o teatro de sempre: o Centrinho, as mudanças de
mesa --- mas já nem ligávamos para quem passava, exceção feita ao
tempo.
Eventualmente,
as duas vieram e nos chamaram para ir à praia e, conforme havíamos
deliberado previamente, acatamos e as seguimos, tendo sido vetada,
por ser considerada suspeita, a ideia de negarmos o luau, propondo em
seu lugar um jogo de baralho que antecipasse nosso grande momento de
trunfo e glória.
Assim
foi que sentamos na areia como se aquele fosse um dia absolutamente
comum e olhamos a rebentação e ouvimos a música, enquanto nos
perguntávamos aos cochichos se já não era tarde, se já não
podíamos organizar a volta à casa. E estávamos nessa quando vimos
dois rapazes deitarem o violão e sentarem do lado das meninas e
conversarem com elas. Como se a gente não estivesse ali!
Eventualmente,
acabamos desistindo de olhar pra escuridão fingindo indiferença e
voltamos pra casa. Jogamos nós o baralho e esperamos até cairmos de
sono sozinhos nos tais colchões.
Quando
acordamos, elas estavam lá, com a gente. Mas aí já não adiantava
mais.
Será
que eu suportaria aquilo, hoje? Aquela conversa, aquelas piadas sobre
a homossexualidade alheia e sobre a genitália própria? Certamente
ainda gosto da areia e do mar, ainda pego caranguejos, quando posso,
mas ouvir Natiruts mal interpretado à meia noite no litoral norte...
É bem
provável que eu esteja melhor com a postura torta e as palavras no
monitor. Mas...
Mas
era uma possibilidade, não era? Mesmo agora, se eu repassar tudo o
que aconteceu desde então, acho que nem consigo identificar
exatamente quando foi que aquilo virou um absurdo. E também não dá
pra dizer que não sejam absurdos este agora, esta camisa, estes
sapatos.
Quando
vim trabalhar no banco, lembrei imediatamente de dois ex-colegas de
faculdade que eu sabia (ou suspeitava) que trabalhavam aqui. Já nas
entrevistas, perguntei ao meu (então potencial) futuro chefe se os
conhecia, mas ele nunca havia ouvido falar em nenhum dos dois. Dei de
ombros, que o banco é grande, cheio de pessoas e departamentos e
tudo o mais. Nenhum motivo para me admirar, evidentemente.
Mas
num outro dia, já contratado, flagrei-lhes os nomes sendo
mencionados numa conversa. Investiguei um pouco e matei a charada: os
dois eram empregados, sim, mas não do banco em si, e sim de outra
pessoa jurídica do mesmo grupo econômico: trabalhavam para um outro
banco, focado em investimentos de grandes pessoas jurídicas, que foi
adquirido pelo conglomerado mas manteve seus funcionários, incluindo
o corpo jurídico.
Cavando
um pouco mais, descobri o e-mail dos dois, e mandei minhas saudações.
Eles responderam, me parabenizando pela contratação e desejando
sorte, mas depois disso nunca mais nos falamos.
Passados
sete meses, o funcionamento do banco começou a fazer mais sentido
para mim, assim como se evidenciaram as relações entre
departamentos, as disputas por orçamento e as rixas internas. Embora
não houvesse hierarquia formal entre as diretorias, comecei a
perceber que determinadas áreas gozavam de certos privilégios,
sempre proporcionais aos lucros que elas rendiam para nossos
acionistas.
O
setor com o pessoal que geria os fundos tinha a melhor vista do
prédio. Os gerentes dos clientes milionários tinha, nos e-mails,
uma assinatura mais personalizada e, na copa, bolachas Calipso, ao
invés das de água-e-sal. Meus colegas que lidam com clientes
internacionais receberam computadores novos. Mas ninguém dava tanto
dinheiro para o banco quanto as grandes pessoas jurídicas e suas
emissões de debêntures, seus IPOs, seus M'n'As, suas operações de
câmbio gerando milhões no float.
Então,
nem os gestores de fundos, nem o pessoal que lidava com socialites,
nem o pessoal do internacional, com suas conference-calls em línguas
sortidas --- nenhum deles se comparava à equipe dos meus dois
amigos. Eram eles que nos exigiam os prazos mais curtos e que mais
nos condenavam por perdê-los. Eram eles que determinavam, com voto
de Minerva, as datas e horários das reuniões. O banco de
investimento era o panteão dentro do conglomerado, e lá só havia
deuses.
Ah,
como eu fui inocente, mandando aquele primeiro e-mail! Eu imagino a
cara deles, ao recebê-lo. O ex-coleguinha de classe que arrumou uma
vaga na cozinha e vem se gabar aos passageiros do cruzeiro. Eu
imagino na cara deles o misto de divertimento e pena com que viram a
animação com que eu relatava minha contratação e os imagino
lançando um para o outro um olhar cúmplice.
Será
que daqui a alguns anos, também vou me lembrar e... Bom, pior seria
não lembrar. De todo modo, é o próprio Gil quem me conforta e diz
que tudo-tudo-tudo vai dar pé.
Faltou "abrir o coração para o mundo..." :(
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