São dez para as sete quando o ônibus chega ao terminal.
Não espero por mais nada, entro logo de mala e cuia e corro para meu assento.
Só quero dormir.
Acordo. O ônibus está parado e eu me sinto revigorado. Já
teremos chegado? Acredito ter dormido mais que nas últimas noites todas, mas
pego o celular para confirmar. São dez para as oito.
Acordo. O ônibus está parado e minha mão esquerda está
petrificada, sem circulação. Meu dedinho não se move. Minhas suspeitas de que
dessa vez, enfim, terei que amputá-lo são logo superadas, quando o formigamento
começa. Por tudo o que sei, até agora, o ônibus não andou um metro.
Acordo. Parados. Duas crianças deixaram seus lugares e por
qualquer razão estão sentadas ao lado do meu assento, em frente à porta do
banheiro. Sem muita razão, sou tomado de uma imensa raiva. Penso que, se me der
vontade de ir ao banheiro, mijarei em cima delas por vingança. Não será a
primeira vez para mim, é claro, nem a última para elas.
Acordo. Está frio, mas há um rapaz de camiseta ao meu lado
e eu, já de agasalho, sinto vergonha de pegar mais um casaco. Será o frio sinal
de que nos aproximamos da antártica Curitiba? Não, reconheço pela janela uma
salgaderia em que parei na minha primeira ida ao Paraná e que sei ser próxima
de São Paulo. Sinto fome, uma fome de doer a barriga, e me lembro do pacote de
Stiksy no meu bolso. No entanto, hesito, por medo de que, se o pegar, as
crianças pedirão. Ora, Gabriel, não é preciso passar fome por puro egoísmo.
Basta dizer Não.
Comer os Stiksys provou-se-me uma maldição: já não posso
dormir antes de acabar o pacote ou sabe-se lá o que acontecerá a ele. Da frente
do ônibus, um senhor se levanta. Lança um olhar resoluto e começa a andar
inabalável em direção aos fundos. Seu andar não é exatamente firme, pois o
ônibus balança (enfim nos movemos, se bem que a passo lento), mas é
determinado, convicto e inexorável como uma força da natureza. De repente,
compreendo: ele vai mijar nos garotos. Uma excitação me domina e eu não sei o
que fazer. Quero ver esta cena, ao mesmo tempo lúdica e grotesca? Não quero,
mas que fazer? Não se pode impedir o velho. Mas não, ele já sorri, pede
licença, vai entrando no banheiro.
Dos dois meninos, apenas um continua aqui. Dorme todo
torto, no chão, e acorda triste quando alguém pede licença para mijar. Já não
sinto raiva. Me pergunto por que ele não vai ao seu lugar. Não terá um? Acaso
venderam passagem a mais? Penso que ele pode ter pulado a catraca, mas isso
seria absurdo em um ônibus que não tem catraca. Atônito, percebo que o que
sinto já é pena, ou até simpatia. Cogito oferecer um stiksy, mas isso criaria
uma situação estranha quando me bater o aperto e eu enfim mijar nele.
Parece que foi só ilusão, ele tinha um lugar. Apenas havia
preferido se sentar à porta do banheiro, o que, agora me lembro, eu também já
fiz. Mas não, desistiu, voltou a uma poltrona lá para a frente. Nem me pediu o
salgadinho. Nem me pediu perdão. Olho para o lado, mas o rapaz de camiseta
ainda dorme. Estou completamente sozinho.
São onze horas quando ele volta. Para não* correr riscos,
vou logo oferecendo os stiksys e ele, é claro, aceita. Já se passaram quatro
horas, afinal, e eu estou escrevendo isso pela segunda vez. Perdi o texto sem
querer. Vocês (quem?) nunca saberão.
*Aumentativo de Paraná.
O ônibus anda bem. Para poder dormir, dei os stiksys ao
menino, num ato de alteregoísmo do qual já começo a me arrepender. Acho que a
viagem ainda dura mais de três horas, hipótese em que as forças extras que a
comida der aos demais passageiros me porá em desvantagem na briga pela
sobrevivência. Me consola saber que morrerei em nome da ciência e, de algum
lugar, Darwin sorrirá.
Acordo. O ônibus está parado, mas há grande movimentação
em sentido à porta. Os assentos ao meu redor estão vazios. Rapidamente, abro a
curtina na esperança de ver uma rodoviária, mas não, é só um posto de serviços.
Tudo bem, ao menos não precisarei recorrer ao canibalismo. Desço, pego uma garrafa
d'água, um bombom e uma fila enorme no caixa. Me pergunto, animado, quão
infiltrado já não devo estar no território paranaense, mas a moça que me cobra
é uma víbora: Nota paulista?
Acordo. Há algum debate sobre as pessoas faltantes do
ônibus, acho que busca-se o consentimento geral para partirmos sem elas e eu,
que já estou aqui, estou disposto a fazer esse sacrifício em nome da
celeridade. Mas aparentemente o consenso é o de que já estamos todos aqui, e a
diferença na contabilidade se deve a haver duas pessoas --- e não uma, como se
supunha --- no banheiro. Estava um pouco alheio aos fatos, mas essa informação
nova me atiça o interesse. Passo os minutos seguintes de olhos cravados na
porta do banheiro, esperando o momento em que os dois incautos terão de sair e
enfrentar o julgamento da sociedade. Decido voltar a dormir quando vejo saírem,
na verdade, uma mãe e sua filha.
Acordo. Sonhei que, para provar um ponto, meu padrasto
despedia o Bob Esponja imediatamente após prometer-lhe que, naquele dia, todo
mundo trabalharia fantasiado. Já começo a desistir da esperança de que algum
dia o ônibus vá chegar a algum lugar. Curitiba não passa de mais uma ilusão ---
como trabalhar fantasiado e tudo o mais.
Chegamos à rodoviária. O ônibus parou, apenas, e todo
mundo já foi se levantando, se desconfortando. Percebo que sou o último que se
deixa ficar e momentaneamente sinto algo como saudades da jornada e de todos os
seus acordos.
Todas as crianças citadas neste texto têm dezoito anos recém concluídos.
ResponderExcluirViajadores, os cabaços!
ResponderExcluirEspero que você tenha pensado num golden shower nas crianças com a maior naturalidade, quando estava semi-adormecido.