20120707

Diário de bordo


São dez para as sete quando o ônibus chega ao terminal. Não espero por mais nada, entro logo de mala e cuia e corro para meu assento. Só quero dormir.

Acordo. O ônibus está parado e eu me sinto revigorado. Já teremos chegado? Acredito ter dormido mais que nas últimas noites todas, mas pego o celular para confirmar. São dez para as oito.

Acordo. O ônibus está parado e minha mão esquerda está petrificada, sem circulação. Meu dedinho não se move. Minhas suspeitas de que dessa vez, enfim, terei que amputá-lo são logo superadas, quando o formigamento começa. Por tudo o que sei, até agora, o ônibus não andou um metro.

Acordo. Parados. Duas crianças deixaram seus lugares e por qualquer razão estão sentadas ao lado do meu assento, em frente à porta do banheiro. Sem muita razão, sou tomado de uma imensa raiva. Penso que, se me der vontade de ir ao banheiro, mijarei em cima delas por vingança. Não será a primeira vez para mim, é claro, nem a última para elas.

Acordo. Está frio, mas há um rapaz de camiseta ao meu lado e eu, já de agasalho, sinto vergonha de pegar mais um casaco. Será o frio sinal de que nos aproximamos da antártica Curitiba? Não, reconheço pela janela uma salgaderia em que parei na minha primeira ida ao Paraná e que sei ser próxima de São Paulo. Sinto fome, uma fome de doer a barriga, e me lembro do pacote de Stiksy no meu bolso. No entanto, hesito, por medo de que, se o pegar, as crianças pedirão. Ora, Gabriel, não é preciso passar fome por puro egoísmo. Basta dizer Não.

Comer os Stiksys provou-se-me uma maldição: já não posso dormir antes de acabar o pacote ou sabe-se lá o que acontecerá a ele. Da frente do ônibus, um senhor se levanta. Lança um olhar resoluto e começa a andar inabalável em direção aos fundos. Seu andar não é exatamente firme, pois o ônibus balança (enfim nos movemos, se bem que a passo lento), mas é determinado, convicto e inexorável como uma força da natureza. De repente, compreendo: ele vai mijar nos garotos. Uma excitação me domina e eu não sei o que fazer. Quero ver esta cena, ao mesmo tempo lúdica e grotesca? Não quero, mas que fazer? Não se pode impedir o velho. Mas não, ele já sorri, pede licença, vai entrando no banheiro.

Dos dois meninos, apenas um continua aqui. Dorme todo torto, no chão, e acorda triste quando alguém pede licença para mijar. Já não sinto raiva. Me pergunto por que ele não vai ao seu lugar. Não terá um? Acaso venderam passagem a mais? Penso que ele pode ter pulado a catraca, mas isso seria absurdo em um ônibus que não tem catraca. Atônito, percebo que o que sinto já é pena, ou até simpatia. Cogito oferecer um stiksy, mas isso criaria uma situação estranha quando me bater o aperto e eu enfim mijar nele.

Parece que foi só ilusão, ele tinha um lugar. Apenas havia preferido se sentar à porta do banheiro, o que, agora me lembro, eu também já fiz. Mas não, desistiu, voltou a uma poltrona lá para a frente. Nem me pediu o salgadinho. Nem me pediu perdão. Olho para o lado, mas o rapaz de camiseta ainda dorme. Estou completamente sozinho.

São onze horas quando ele volta. Para não* correr riscos, vou logo oferecendo os stiksys e ele, é claro, aceita. Já se passaram quatro horas, afinal, e eu estou escrevendo isso pela segunda vez. Perdi o texto sem querer. Vocês (quem?) nunca saberão.
*Aumentativo de Paraná.

O ônibus anda bem. Para poder dormir, dei os stiksys ao menino, num ato de alteregoísmo do qual já começo a me arrepender. Acho que a viagem ainda dura mais de três horas, hipótese em que as forças extras que a comida der aos demais passageiros me porá em desvantagem na briga pela sobrevivência. Me consola saber que morrerei em nome da ciência e, de algum lugar, Darwin sorrirá.

Acordo. O ônibus está parado, mas há grande movimentação em sentido à porta. Os assentos ao meu redor estão vazios. Rapidamente, abro a curtina na esperança de ver uma rodoviária, mas não, é só um posto de serviços. Tudo bem, ao menos não precisarei recorrer ao canibalismo. Desço, pego uma garrafa d'água, um bombom e uma fila enorme no caixa. Me pergunto, animado, quão infiltrado já não devo estar no território paranaense, mas a moça que me cobra é uma víbora: Nota paulista?

Acordo. Há algum debate sobre as pessoas faltantes do ônibus, acho que busca-se o consentimento geral para partirmos sem elas e eu, que já estou aqui, estou disposto a fazer esse sacrifício em nome da celeridade. Mas aparentemente o consenso é o de que já estamos todos aqui, e a diferença na contabilidade se deve a haver duas pessoas --- e não uma, como se supunha --- no banheiro. Estava um pouco alheio aos fatos, mas essa informação nova me atiça o interesse. Passo os minutos seguintes de olhos cravados na porta do banheiro, esperando o momento em que os dois incautos terão de sair e enfrentar o julgamento da sociedade. Decido voltar a dormir quando vejo saírem, na verdade, uma mãe e sua filha.

Acordo. Sonhei que, para provar um ponto, meu padrasto despedia o Bob Esponja imediatamente após prometer-lhe que, naquele dia, todo mundo trabalharia fantasiado. Já começo a desistir da esperança de que algum dia o ônibus vá chegar a algum lugar. Curitiba não passa de mais uma ilusão --- como trabalhar fantasiado e tudo o mais.

Chegamos à rodoviária. O ônibus parou, apenas, e todo mundo já foi se levantando, se desconfortando. Percebo que sou o último que se deixa ficar e momentaneamente sinto algo como saudades da jornada e de todos os seus acordos.



Ao Ministério Público, à minha família e à sociedade: essa é uma obra de ficção. Seus personagens são fruto da imaginação do autor e/ou foram usados em sitações fictícias. A prática do Golden Shower, embora não desincentivada por esta obra --- que, no mais, respeita e aplaude a diversidade sexual ---, não deve jamais ser feita dentro de ônibus. Por questões de logística, se não por qualquer outra razão.

2 comentários:

  1. Todas as crianças citadas neste texto têm dezoito anos recém concluídos.

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  2. Viajadores, os cabaços!
    Espero que você tenha pensado num golden shower nas crianças com a maior naturalidade, quando estava semi-adormecido.

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