20101016

certeza

Era aos sábados que Júlio saía de casa, de chinelo, e ía até o bar na esquina, comprava meia dúzia de chicletes, dois isqueiros e voltava pra casa, sem correr e sem arrastar o pé, entrando rápido pelas portas entreabertas como se fosse uma savana, se estendendo pelo deserto recortando o chão com descaso. Entrava, então, sem sorrir, olhando baixo à moda outonal e evitando o próprio olhar reprovador nos quadros e fotos e espelhos e desenhos que o acompanhavam caricaturalmente corredor adentro, um corredor longo, esticado quase dimensionalmente, um wormhole de desenho animado tornando seu trajeto mais agradável. Entrava, enfim, sem grandes intenções, um grande homem em si mesmo e em seus trejeitos, pequeno em tudo mais, e deixava escapar o gás dos isqueiros enquanto mascava enormes chicletes, e assim era feliz.

Foi num sábado, portanto, óbvio, evidente, que eu conheci Júlio, entrando em sua casa de maneira direta e pontual, portando um sorriso. Eu sabia que Júlio era inocente e oval como um pião, girando em sua órbita falsamente elíptica e deformada, porém autocontida e totalmente alheia ao universo, em seu loop definitivo, olhos virados para dentro como os de um monstro, mas sem o ser. Eu sabia que ele era um homem fraco, no plano objetivo, de mãos quebradiças e de unhas mal-comidas, rosto de poucas camadas, que mal seria capaz de levantar uma cadeira para me acertar. E eu sabia que ele era um homem sem imaginação, e os grandes monstros são apenas figuras de imaginação, românticas, excessivamente transbordantes de romantismo apodrecido, como o vinho, que quando passa do tempo se torna cianureto, uma poção mortal de lenda donzelas, e que portanto não poderia ser um monstro, nenhum horror lá, só o tédio. Eu sabia, portanto, que ele era inocente, mas isso não poderia importar, porque eu já fora pago e Júlio era um homem estranho que não sabia dizer cumprimentos a ninguém de maneira satisfatória, e mais de três meninos já tinham sumido, e havia tantos pais preocupados, raivosos, sedentos, babando, esporrando necessidades, e alguém precisava sumir que não fosse um menino de seis anos, encontrado duas semanas depois com o cu arrombado e cheio de sangue seco e poeirento, e então esse alguém era Júlio, porque os pais precisam de paz.

3 comentários:

  1. Cumprimentos de maneira satisfatória... Eu também não sei.

    ResponderExcluir
  2. eu-lírico: SERRA

    (o verdadeiro culpado do sumiço dos meninos, aliás, ficasdica).

    Excelente.

    ResponderExcluir