20100826

Parte IV – Por que você está sozinho aqui?, perguntou Sereia para o desconhecido, sentando-se em frente a ele e sinalizando para que um atendente lhe trouxesse licor


“É uma história longa, se você quiser ouvir. Eu saí de casa quando meu pai desapareceu, anos atrás (eu não conheci minha mãe, porque ela morreu uma semana antes de eu nascer). Foi o verão mais quente de que eu consigo me lembrar e toda a plantação secou e minha irmã estava chorando muito, porque ela tinha uma doença grave. Então eu deixei ela na frente da igreja da minha vila, juntei algumas coisas e peguei a estrada.
Eu andei durante cento e oitenta e sete dias e cinco noites, sem parar para comer e sem água para beber, até que três pássaros me apareceram em um sonho e disseram que eu encontraria meu Destino no topo da colina das três árvores, desde que chegasse lá em menos de quarenta e oito horas.
Com a velocidade que eu adquiri por ter sido criado por uma manada de gnus, eu venci os três mil quilômetros da subida dentro do prazo e, arfando, descobri lá em cima o esconderijo da temível Corja dos Malamados. Cansado e surpreso, eu fui facilmente rendido pelos malfeitores que, armados até os dentes, me jogaram em uma catacumba escura. A julgar pelo crescimento de minha barba, eu fiquei preso por três dias, quando, enfim, um deles apareceu e me fez uma proposta: ou eu me juntaria a eles na busca pelo Potro ou eles me matariam ali mesmo, a mordidas.
Sem alternativa, ajudei-os a construir um barco com gravetos recolhidos do bosque aos pés da colina. A construção levou três semanas e ao fim desse tempo, despedimo-nos de nossas esposas e partimos.
O Potro, como você sabe, é animal arisco que detesta água. Assim, por mais que navegássemos, não o conseguimos encontrar. Cogitamos a hipótese de atracar às margens do rio e continuarmos a busca em terra firme, mas isso nos pareceu um terrível desperdício de todo o esforço despendido na construção da embarcação, de forma que seguimos navegando. A fome e o escorbuto já haviam dizimado boa parte de nossa tripulação quando eu, em um momento de insônia, saí para o cais sob o sol forte do meio dia e vi uma figura humana desenhada em meio à névoa.
A figura se virou em minha direção e disse em tom pesado: I am thy father's spirit. Doom'd for a certain term to walk the night. Eu, que não entendo inglês, devo ter sido enfeitiçado por aquelas palavras e, ainda sem saber o que fazia, me atirei do convés. Eu podia ouvir os Malamados gritando juras de que me encontrariam para cobrar minha dívida de sangue, mas corri para as margens do rio e adentrei a escuridão.
Desde então, vivo entre dois mundos, aquele das coisas táteis e o dos espíritos. Neste, meu pai me visita com frequência, me oferece a mão e guia-me pela escuridão em direção a lugares ainda mais horríveis do que os em que eu antes estava e então me abandona à minha própria sorte; naquele, é a Corja quem vem e me decepa membros com suas lâminas afiadas e me força a correr para salvar-me. Minha redenção, porém, ocorre todas as noites, quando, cansado e assombrado pelo medo e a solidão, eu me deparo com a entrada desta vila e com a visão do cabaré como um lugar em que eu posso entrar, demorar e pedir uma cerveja.”

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