20111209

Análise crítica e reflexão sobre o vídeo "Escolinha do Pedagogo Alquiminto"

http://www.youtube.com/watch?v=VtyBlvhOX3A vídeo analisado


A arte política não é apenas panfleto - essa é uma acusação feita pelos seus detratores, e é uma acusação de tanta carga político-ideológica quanto a arte atacada. Fazer arte política não é musicar uma propaganda partidária nem dançar enquanto se recitam as teses de Marx - ao menos não só; a arte política é aquela que reflete e pensa criticamente o seu próprio tempo e produz conteúdo de valor estético-formal que remeta à "realidade" e tome posições diante dela.

Isso posto, deixo claro logo de início que considero louvável a produção de vídeos que se proponham a refletir sobre tudo que tem ocorrido na USP: é necessário que criemos contrapontos à Versão Oficial dos fatos, que expressemos nossos olhares sobre o que aconteceu e nossas exigências. Levando em conta a minha visão (acima expressada) acerca de arte política, considero necessidade básica que os vídeos produzidos não se valham apenas pelo "conteúdo" (se é que isso existe): se vamos criar "objetos artísticos de protesto", é óbvio que a estética segundo a qual eles existem seja tão pensada quanto "o que eles dizem" - ainda mais se tratando de uma peça ficcional, e não uma reportagem ou um ensaio.

Nesse sentido, considero o vídeo problemático em diversos aspectos.

A suposta "paródia" dos programas de tv do tipo "Escolinha do Professor Raimundo" e similares não é, em si só, um problema - a paródia é reconhecida como arma efetiva de crítica e ridicularização de idéias há tempos. A questão aqui é: o que estamos parodiando? Programas como "Escolinha" se baseiam em uma situação supostamente ordeira (aula) que se revela proto-anárquica, com a presença de diversos "tipos" engraçados e a falta de controle do professor sobre os alunos - é, basicamente, humor de personagem e de situação. A paródia realizada não parece compreender isso muito bem, apenas absorvendo o cenário - escola - e o título, sem emular verdadeiramente o "espírito" do programa. Constrói-se uma situação onde o único personagem verdadeiro é o professor (paródia de Geraldo Alckmin? é impossível saber: afora o nome ("Alquiminto"), não há nenhum tipo de estabelecimento de paralelos com o governador, nem com suas idéias, nem mesmo com o seu físico. tudo que vemos é um professor gritalhão e desagradável.), onde os alunos são rostos apagados, máscaras* ou corporificação de idéias básicas. Paradoxalmente, dessa maneira, dá-se muito mais "poder" ao professor do que nos programas parodiados - como só ele fala e tem personalidade definida, é apenas a sua presença que domina o vídeo.

(* abro aqui um parêntese para comentar as máscaras: o que elas significam? colocar os "rostos" de "inimigos" dentro de uma classe apática e aparentemente não alinhada ao professor totalitário não faz muito sentido - teoricamente, datena, rodas e quetais estariam totalmente aliados ao governador e não necessitariam de "aulas de democracia" para se colocarem ao seu lado. além disso, acredito que o rosto de reinaldo azevedo seja bem pouco conhecido e a sua presença lá acaba se tornando uma espécie de "piada interna" pouco interessante - ainda que eu o despreze etc.)

O problema principal que vejo no vídeo é, no entanto, um só: indecisão. Sendo grosseiro, existem duas modalidades possíveis de arte política: radical-revolucionária e reformista-controlada. As duas são válidas e cada uma tem prioridades diferentes: o primeiro modelo pressupõe-se mais objeto artístico do que necessariamente objeto de conscientização - há uma certa "integridade" por trás da obra proposta que não será violada nem "diluída" na tentativa de torná-la mais acessível/palatável a mais gente. Não há absolutamente nada de errado quanto a isso: existem exemplos históricos de arte radical bastante louvável, desde diversas bandas punks que não pretendem buscar consenso até os filmes do casal Straub-Huillet, de teor marxista-materialista inveterado que não se rende a concessões "clássicas" sobre narrativa ou espetáculo. É importante notar, no entanto, que essas obras pautam-se pelo encontro de um conteúdo radical aliado a uma estética tão extrema quanto - uma noção que vem fortalecida desde a arte revolucionária soviética. Cria-se um objeto que não só "diz" revolução mas também "é" revolução.

O segundo modelo, de "conciliação", teria uma preocupação maior com um suposto contato com o público-alvo e a transmissão de idéias de maneira talvez "homeopática" - evita-se a violência das verdades gritadas e procura-se o caminho do convencimento gradual. Nesse caso, adotam-se modelos formais já convencionais e reconhecíveis, numa tentativa de acesso ao público por uma via que ele já conheça - é o caso, por exemplo, de reportagens que emulem os formatos da grande mídia, de documentários como "Uma Verdade Inconveniente", etc. Procuramos mostrar "o nosso lado" de uma maneira que evoque as fabulações já propostas pelo "outro lado".

O que o vídeo analisado parece fazer, para mim, é bambear entre essas duas propostas sem ter certeza do que pretende. No sentido de "conciliação", adota um formato pretensamente reconhecível - a paródia de um programa televisivo familiar a grande parte da sociedade brasileira. No sentido "radical", a retórica adotada é extremamente violenta e cheia de gritos. No sentido de "conciliação", há um momento extremamente didático de explanação de porque certas atitudes seriam anti-democráticas. No sentido "radical", há a reprodução de imagens bastante violentas e perturbadoras (tortura, insinuação sexual forçada, etc). O resultado final acaba sendo esquizofrênico - um vídeo que, do nosso lado, só traz os gritos e o ódio, mas cujo formato é uma emulação precária do pior que o formalismo-conservador tem a oferecer.

Eu não seria contrário a um vídeo que fosse puro ódio - ainda que não saiba exatamente a que "propósito" se prestaria, que não seja o da arte extremamente individualista e pessoal -, caso ele se inspirasse em formas verdadeiramente diferentes e radicais e novas. Eu não seria contrário, também, a um vídeo "proselitista" que emulasse formatos "batidos" na tentativa de comunicar uma idéia que precisa urgentemente ser comunicada. O que me incomoda nesse caso é que o vídeo realizado parece não ter "função" alguma.

Como objeto-artístico-em-si-só, é de realização precária e confusa - a decupagem alterna entre o utilitarismo do plano geral-plano detalhe sem se propôr nem à paródia bem realizada da estética dos programas televisivos (que têm suas especificades), nem a uma tentativa de outra estética nova ou pensada, que fuja um pouco do básico-lavado imposto ao mundo pelas câmeras digitais de alta-definição. Há momentos de pura confusão estética: o interlúdio "bossa-nova", o trecho regado a música erudita (e o aparente regojizo frente às imagens de violência), o final "quebrando a quarta parede" que parece desconexo do resto do filme, etc. As piadas parecem evocar apenas o mais pueril e vulgar e simplista da programação de comédia da tv aberta, numa operação que acaba associando essa vulgaridade às "idéias" que tentamos propagar - quando, no fim, faz-se a piada com "dedo no cu", não estamos sendo quebradores de paradigma nem revolucionários: estamos apenas perpetuando um discurso vulgar, simplista e reacionário quanto a sexo e corpo, agora associado aos "nossos ideais".

Como objeto-político-de-conscientização, é um produto extremamente confuso: assisti o vídeo algumas vezes e ainda tenho dificuldade em compreender o que ele "quer dizer", afora talvez "Não gostamos de Geraldo Alckmin.". Não há nenhum momento real de discussão ou refutação de idéias, de reflexão sobre os acontecimentos ou mesmo de esclarecimento real sobre "qual é a questão": o instante mais "sério", a pergunta do personagem "Pedrinho", perde a maior parte da sua força por ser direcionada a um interlocutor tão obviamente estúpido (a ponto de não representar absolutamente nada) e por ser executada de maneira ultra-didática-professoral que destoa agressivamente do resto do vídeo. A impressão passada pelo conteúdo do vídeo é que nós, alunos da USP, odiamos alguma visão distorcida de Geraldo Alckmin (embora nem saibamos direito o que ele acha ou pensa) e não temos nada a propor ou falar sobre isso. Esse procedimento, aliás, de ridicularizar o interlocutor e atribuir a ele idéias estúpidas para mais fácil refutá-las tem um nome, "Falácia do Espantalho", e é uma das estratégias mais comuns da chamada "mídia golpista" que tentamos criticar (é só pensar na palavra de ordem "Ah, mas que vergonha/achar que a greve é por causa da maconha", que só existe para refutar esse tipo de simplificação sobre o nosso movimento).

Não escrevo isso com o intuito de ridicularizar nem de destruir: proponho apenas uma reflexão sobre o vídeo, suas características e seus objetivos: no meu contato com a obra, a impressão que ficou foi de algo de teor extremamente vulgar, pouco pensado, sem objetivo claro e cujo "efeito" final, caso tenha algum contato com o "público", seria apenas o de associar a nós uma imagem raivosa, pouco construtiva, nada aberta ao diálogo e incapaz de criar um discurso coerente e atrativo.

Gostaria que pensássemos: o que queremos obter com a nossa "produção de greve"? Gostaria que refletíssemos no intuito de criarmos obras que sejam reflexo do que pensamos: que explorem novos formatos, que explorem novas idéias e que procurem, verdadeiramente, um diálogo e uma maneira de expormos O Que Vemos E Pensamos Aqui Na Usp. Não quero uma arte "coxinha" nem "pelega": não acho que devemos apenas emular formatos jornalisticos e nos portarmos como "bons meninos" - isso não seria justo nem interessante. Acredito que seja possível, no entanto, praticarmos uma arte que seja "nossa", genuinamente, e que seja baseada nas nossas preocupações estéticas e políticas sem se render ao ódio fácil e "espontâneo" e pouco pensado.


Guilherme Assis, 09/12/2011

Aluno do Curso Superior do Audiovisual - ECA - USP.

9 comentários:

  1. Eu acho que este problema da produção de greve mal pensada e que indo contra aquilo que queremos e pensamos é causado principalmente pela ânsia e desespero de produzir.
    Eu vejo muita gente querendo produzir muito, já que estamos em greve e temos que provar que não é uma greve de pijama, mas acabam sendo feitas coisas que são muito mal pensadas e que não são discutidas direito por quem está realizando, dai acaba ficando superficial e passando a idéia errada.

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  2. Concordo em partes, discordo de muita coisa. Acho interessante o "pensar na produção", mas não somente na greve, temos que pensar no formato e linguagem em qualquer momento. Os problemas apontados por vc, Guilherme, existem para além da greve. São problemas que muitos alunos de cinema enfrentam.
    Tbm acho q cada um tem uma visão, se os meninos querem ser agressivos e tentar responder à altura de um Reinaldo de Azevedo, eles tem todo o direito. Quanto mais opiniões, melhor, acredito que fomenta a discussão e o diálogo.

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  3. ah, claro que tem direito, não tou propondo censurar ninguém. só acho que a resposta nesse sentido acaba sendo muito mais dentro do jogo dele (reinaldão) do que do nosso, e acaba sendo mais munição pro cara falar "aluno da usp é um bando de vagabundo vândalo maconheiro". acredito que, caso a idéia fosse fazer algo raivoso agressivo etc, fosse mais jogo adotar uma estética realmente mais agressiva-radical que não fique presa aos joguinhos pseudo-retóricos que a grande mídia/reinaldo azevedo curtem.

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  4. Concordo com a Olívia. Achei o texto um pouco excessivo, citando referências uma por uma e fazendo suas conjecturas pra ser resumido nos ultimos 2 parágrafos (que, pra mim, são os que importam de fato). Como foi dito, esse vídeo provavelmente foi feito na ânsia de produzir alguma coisa enquanto a greve acontece, não acho que tenha alguma pretensão além de uma tentativa de mensagem rápida. Por isso, acredito, é mais válido analisar a produção da greve de um modo geral do que escrever extensamente sobre cada obra individualmente. De qualquer forma, foi uma boa análise :)

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  5. escrevi especificamente sobre esse vídeo porque me chamou atenção individualmente e, sendo sincero, tive receio de que a ~mensagem~ propagada pelo vídeo fosse prejudicial/negativa. acredito que o efeito que esse vídeo teria, seilá, na minha mãe ou no reinaldo azevedo seria apenas de acirrar ódios e preconceitos, sem nenhum contrapeso positivo.

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  6. Discordo enormemente do que foi dito pelo Lucas. Se se busca contra-informar é preciso sim que a obra se mantenha de pé a uma crítica rigorosa. É como dizer que as propagandas de 15 segundos não são passíveis de análises extensas. Aí me parece que caímos justamente no jogo da "mensagem rápida". Creio que quanto mais rápida a velocidade da mensagem, mais lento seu planejamento, pois uma mensagem certeira e claríssima é algo trabalhoso (pro bem e pro mal).

    Apoio a produção da greve, mas não podemos engolir sapo apenas porque a causa é nobre. É preciso uma crítica permanente, e de certa forma é esse o mérito do vídeo, por ser tão explícito em suas contradições, possibilitando uma reflexão como essa, que concordo plenamente. Parece quase uma injustiça apontar falhas em um trabalho que busca ser benéfico para o movimento, mas não se pode concordar com tudo, é preciso – até certo ponto - se unir pelas diferenças.

    Não há no vídeo nenhuma contra-informação útil de nosso lado, apenas um contra-cinismo que ajuda a perpetuar a falta de debate de ideias reais, não de ânimos. Simular o fascismo é algo muito perigoso, vide as interpretações de Tropa de Elite.

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  7. Acabo de perceber como a República está em constante "produção de greve". Parabéns!

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  8. A impressão que tenho dessa série de vídeos-paródias que estão sendo produzidos na greve (o banquinho da praça / Jornal Hoje), é, primeiro, um incômodo enorme daquilo que a "mídia" coloca sobre a greve, e depois, uma inabilidade de se posicionar frente a esse incômodo. Disso resulta esses trabalhos confusos, que tentam balancear uma comunicação (no sentido de atuar como "contra-informação" literal), e um posicionamento político frente aos eventos vividos.
    Outra questão que percebo é certo discurso que responsabiliza antecipadamente nossa produção de greve enquanto "formadora de opinião". Coloca-se que enquanto "estudantes de audiovisual" devemos atuar no sentido de combater o senso comum propagado pela mídia tradicional, ou algumas figuras específicas. Com o pouco tempo, apela-se então pela facilidade das fórmulas prontas para se expressar temas com os quais parecemos não ter nenhuma relação existencial efetiva. Daí o cinismo, e para mim, a falta de autenticidade dos trabalhos.
    Dentro desse quadro, vislumbro que a crise citada pela Olívia tenha em si muito mais potencial pra se pensar a greve: nosso papel dentro dela, nossa experiência com ela. A política, ao meu ver, deve surgir daí. Isso exige um reconhecimento dos limites (criativos, existenciais, técnicos) para disso extrair algo que seja sincero, e que traga algo um pouco mais autêntico para a experiência da greve e para a produção dos videos.

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  9. Lançaram o vídeo paródia da Praça é Nossa: http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=l16BPsLYXT0

    Muito bem conduzido, inclusive usa o imaginário Like a Rodas no final.

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