20111217

i de ironia, david foster wallace (serrote no. 6)

A ironia da arte e da cultura do pós-guerra começou da mesma maneira que a rebelião jovem. Era algo difícil, doloroso, mas produtivo – o soturno diagnóstico de uma doença longamente negada. As premissas por trás daquela primeira ironia pós-moderna, por outro lado, ainda eram francamente idealistas: supunha-se que a etiologia e o diagnóstico apontaseem para a cura, que a exposição do cativeiro conduziria à liberdade.

Então como foi que a ironia, a irreverência e a rebeldia se tornaram debilitantes, em vez de libertadoras, na cultura sobre a qual a vanguarda de hoje tenta escrever? Uma pista pode ser encontrada no fato de que a ironia ainda está aí, maior do que nunca, depois de 30 anos como modo dominante de expressão dos artistas antenados. Não é um recurso retórico que envelheça bem. Como diz Hyde (de quem eu obviamente gosto), "a ironia tem uso apenas emergencial. Estendida no tempo, é a voz do prisioneiro que passou a gostar de sua cela." Isso se deve ao fato de que a ironia, embora prazerosa, tem uma função quase exclusivamente negativa. É crítica e destrutiva, boa para limpar o terreno. Com certeza era assim que nossos pais pós-modernos a viam. Mas é particularmente inútil quando se trata de construir alguma coisa para pôr no lugar das hipocrisias que expõe. Eis por que Hyde parece acertar ao dizer que a ironia renitente é cansativa. Eu acho perversamente divertido ouvir o discurso de ironistas talentosos em festinhas, mas sempre saio dali com a sensação de ter sido submetico a várias intervenções cirúrgicas radicais. Sem falar em atravessar o país de carro ao lado de um ironista talentoso, ou ler um romance de 300 páginas e que não há nada além de sarcasmo espertindo, experiências que nos deixam não apenas vazios, mas, de alguma forma, oprimidos.

Pense, por um momento, nos rebeldes do Terceiro Mundo e seus golpes de Estado. Rebeldes do Terceiro Mundo são ótimos na tarefa de denunciar e pôr abaixo regimes hipócritas e corruptos, mas parecem consideravelmente piores no trabalho mundano e não negativo de estabelecer em seguida uma alternativa superior de governo. Rebeldes vitoriosos, na verdade, parecem se sair melhor quando usam seus talentos de força e cinismo para evitar que outros se rebelem contra eles – em outras palavras, tornam-se apenas tiranos mais competentes.

E não resta dúvida: a ironia nos tiraniza. Nossa difusa ironia cultural é, ao mesmo tempo, tão poderosa e tão frustrante porque é impossível saber com clareza o que quer um ironista. Toda a ironia americana se baseia num argumento implícito: "Na verdade, eu não quero dizer o que estou dizendo". Mas então o que a ironia como norma cultural ˆquerˆdizer? Que é impossível querer dizer o que se diz? Que talvez seja mesmo uma pena ser impossível, mas acorde para a vida e pare de sonhar? Acredito que, no fim das contas, a ironia de hoje está provavelmente dizendo o seguinte: "Que coisa absolutamente banal você me perguntar o que eu quero dizer". Qualquer um que tenha a petulância herética de perguntar a um ironista o que ele na verdade defende acaba por parecer histérico ou careta. Eis o caráter opressivo da ironia institucionalizada, do rebelde bem-sucedido demais: a capacidade de interditar a questão sem se reportar a seu conteúdo é, quando exercida, tirania. Trata-se da nova junta de governo, usando a própria arma que devastou seu inimigo para se encastelar.

4 comentários:

  1. É verdade. Mas aqui há humor e afeto, até porque não vendemos nada – ao menos até o fanzine sair e ganharmos muito dinheiro com isso. Você discorda que haja cinismo em boa parte da cultura?

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  2. Há cinismo em tudo, não é o que o DFW está colocando, justamente?

    Humor e afeto e "ironista talentoso" me parecem todos no mesmo campo, aproximadamente.

    Não sei se ganhar ou não dinheiro faz diferença. Também, é mais uma autoprovocação do que qualquer coisa: achar as partes construtivas em nosso projeto coletivo artístico.

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  3. Justamente, qual a parte construtiva. O cinismo puro é o nada, enquanto que a ironia que parte do humor ou do afeto críticos - que é como vejo a maioria de nossas contribuições aqui - é uma coisa diversa. A autocrítica é evidente e bastante justificável, somos crianças terríveis, mas me parece que não é a mesma coisa que o DFW coloca generalizando. A República, sua forma, é de certa maneira um antídoto (ou ao menos não uma continuidade), pois é consciente de sua liberdade irônica, sua prisão, nossa limitação.

    Mas o que quero dizer quanto às vendas é que existe uma cultura de sobrevivência que se baseia no cinismo, enquanto que aqui somos mais uma cozinha que distribui petiscos de graça, mesmo que sejam ruins ou azedamente cínicos. Há uma diferença entre precisar vender e não precisar. É aí que entra o afeto e toda a humanidade da coisa, que é o que nos salva no fim das contas. Por isso não é possível um golpe ditatorial nessa República, pois ninguém pode comprar-dominar coisa alguma com petiscos afetivos. E quando consegue é apenas outro afeto, uma resposta.

    Quem pode dar um golpe é o Blogger, irmão do Deus Parmesão.

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  4. (uma autocrítica como valoração: poderíamos ser isso, mas NÃO SOMOS)

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