Olho
distraído, distraído porque faço outras coisas, coloco os pratos
na máquina, rego meu pé de sálvia, cuido da minha vida, enfim,
olho e meu olhar se depara com a janela que dá para a rua e eu
instintivamente procuro o imenso tanque de aço maciço que deveria
avançar em direção à Vergueiro, rodeado por milicianos deste ou
daquele lado, todos muito festivos com suas bandeirolas dessa ou
daquela cor e cantando hinos e incitando as pessoas das casas a se
juntarem a elas, supondo que já tenham terminado com a louça ou a
sálvia. Na Vergueiro estariam já outros tantos tanques, e porque
moro perto eu penso que deveria ser capaz de ouvir os tiros dos
canhões, as dinamites, o grito assustado das pessoas correndo rua
abaixo e se deparando com o tanque e os milicianos em festa.
Mais
abaixo, na praça, ocupando a quadra onde em outros tempos alguém
jogaria futebol ou soltaria o cachorro para correr um pouco, imagino
os outros jovens, talvez com porte menos atlético e ar mais
intelectual, lendo textos muito antigos ou muito novos em voz alta
para as pessoas ao redor, chamando-as para a ação. Mesmo as pessoas
que estejam na praça apenas porque queriam soltar seus cachorros
certamente se comovem, talvez não pelo texto, que afinal é um pouco
antigo, mas sim pelo fato de estarem os tanques nas ruas e por todo o
resto, as certezas todas se desmantelando sob os aviões bombardeiros
e os tiros de metralhadora.
A
essa altura, tenho certeza de que uma menina vai vir correndo da
praça, subir a rua a despeito de os tanques serem todos inimigos (no
fim, todos os tanques são inimigos, porque ela é uma pacifista
convicta), vai gritar em resposta para os milicianos que naturalmente
não teriam como ouvir nada e então ela vai olhar para cima na
esperança de encontrar ajuda e seus olhos encontrarão nada mais
nada menos que os meus próprios, um pouco distraídos com a louça,
mas ainda assim capturados pela cena e pela rua e pela janela. Eu
também não ouviria nada do que ela diria, mas saberia que era
importante, ciente dos tanques e dos tiros e dos aviões.
No
fim, não havia nada de inocente no meu ato de estar distraído e me
deparar de repente com a janela, era tudo absolutamente programado
para eu testemunhar um ato qualquer de coragem que me tirasse da
janela, talvez não sem antes regar também a pitangueira e o
coentro, e descer para a rua para combater também os milicianos com
suas dinamites, na esperança de conservar um mínimo de normalidade
no mundo, evitar que aquelas pessoas todas a destruíssem a tiros.
Mas
não tem tanque nenhum subindo a Machado de Assis. Se alguém está
atirando na Vergueiro, daqui eu não ouço nada.
Talvez
eu tenha entendido tudo errado.
Talvez
seja justamente a normalidade que eu deveria sacudir das pessoas na
rua, trazer eu mesmo os tanques, lançar minhas próprias dinamites.
Nem
que fosse só pra deixar o mundo um pouquinho mais coerente.
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