20140131

Especialização


Saindo do Soho (onde paguei por um corte o que normalmente me permitiria cortar o cabelo umas quatro vezes --- mas essa é outra história), me peguei novamente em uma situação tremendamente incômoda e que tem se tornado também tremendamente frequente. Foi assim:
Ainda lavando o cabelo (pelo que eu tive que pagar dez reais adicionais, o que não me foi informado de antemão e ainda configura venda casada, mas isso é outra história), eu expliquei para a moça (a Taiz --- acho que assim: com Z) que eu queria que meu cabelo ficasse comprido, mas mais ou menos curto, mas que continuasse crespo, mas não tão crespo, ou talvez mais crespo, não sei, o que ela achava? Expliquei que todas as vezes que eu tinha ido ao cabeleireiro até então eu tinha sido perguntado sobre como queria deixar meu cabelo e que em cada uma dessas vezes eu respondi uma coisa diferente (“pode abaixar aqui e raspar do lado”; “só arruma o que tiver fora do lugar”; “mete a máquina aí!”), mas que todos os cabeleireiros ignoraram terminantemente minhas respostas vagas e simplesmente fizeram o que quiseram e no fim o meu cabelo acaba sempre indistinguível de cada uma das vezes anteriores. E eu expliquei que por causa disso eu preferia não falar nada, que ela fizesse o que bem entendesse contanto que meu cabelo acabasse comprido, mas curto e crespo e diferente das outras vezes todas em que cortei o cabelo.
Ela fez --- acho que ela fez um bom trabalho. Ficou legal, e tudo o mais, apesar de muito curto e, francamente, igual a todas as outras vezes em que eu cortei o cabelo (só que quatro vezes mais caro etc). A principal diferença em relação à maioria dos lugares que custam quatro vezes menos é que ela me sugeriu comprar um modelador de cachos que daria ao meu cabelo a proporção correta de crespice e armação, enquanto os outros não me recomendam absolutamente nada.


Quatro anos antes, eu instalei o Ubuntu 10.04 LTS Edition no meu computador. Meses depois, animado com a possibilidade de não usar Windows Vista e com a leitura de Neuromancer, instalei o Linux Mint Debian Edition --- LMDE para os chegados --- no notebook.
A primeira coisa que eu aprendi sobre o Linux é que, com ele, eu poderia realizar todas as minhas fantasias mais loucas em termos computacionais; eu poderia mudar qualquer aspecto da interface, poderia usar efeitos tridimensionais absolutamente inúteis, desde que ciente de que eles superariam em muito o que a minha limitadíssima placa de vídeo Intel Onboard pode fazer, poderia testar softwares em desenvolvimento etc. A segunda coisa que eu aprendi foi que para fazer qualquer coisa dessas eu precisaria estar disposto a deixar de me preocupar com a bomba, isto é, com a possibilidade de inutilizar completamente meu computador (o que, de fato, ocorreu algumas vezes) e aprender a amar o Google.
Em uma das minhas buscas, achei alguém que, em um fórum, tentava esclarecer uma dúvida que eu compartilhava. As respostas foram as mais diversas, mas todas envolviam uma série de linhas de comando que precisariam ser executadas no Terminal.
“Por que não fazer isso com o mouse?”, perguntou o sujeito do fórum: outra dúvida que eu compartilhava.
Alguém --- um veterano de Linux, presumivelmente, um viúvo do Unix, um entusiasta do Slackware --- respondeu que aquele era o problema das pessoas que migravam do Windows: queriam tudo mastigado! Somente com as linhas de comando é que se poderia entender de verdade o funcionamento de um computador (aparentemente porque existe uma estranha conexão entre copiar e colar códigos que estranhos postam em fóruns na internet e o funcionamento do kernell de um sistema operacional) e qualquer acomodado que quisesse simplesmente clicar aqui e ali e resolver seus problemas era bem vindo a retirar-se do mundo open-source e voltar para a ameaça constante dos vírus, trojans e worms que, na visão do indivíduo, assombram o Windows. Vários usuários manifestaram sua concordância em relação a essa afirmação.


Antes ainda disso, em 2009, eu voltei da Inglaterra entusiasmado com a ideia de adotar a bicicleta como solução de transporte. Mais do que isso, porque eu era um idiota, voltei entusiasmado com as bicicletas sem marcha e com freio contrapedal que eu havia visto na Holanda.
Eu fui a uma bicicletaria na Sena Madureira (a propaganda não vale muito, a essa altura, porque o lugar, merecidamente, fechou), falei mais ou menos o que eu queria e, uma semana depois, recebi a ligação dizendo que minha caiçara tinha chegado.
Era uma bicicleta de trezentos e cinquenta reais, pesada como chumbo e com uma proteção de esponja no guidão. Dias depois, em outra bicicletaria, me diriam que todos os parafusos tinham vindo mal apertados. A coroa também não demorou muito a quebrar, o que permitiu que eu trocasse a original, com sua imagem pré-adolescente de uma caveira para uma de metal liso, muito mais adulta. Mais tarde, eu descobrira que a simplicidade do modelo não permitiria que eu trocasse os pedais.
A Vandinha (esse é o nome dela, à minha revelia) é a melhor bicicleta do mundo, mas isso não me impediu de, em 2012, comprar uma mais moderna, com clipes nos pedais (o que, me disseram, aumenta muito o rendimento da pedalada), amortecedor na frente (o amortecedor de trás, me disseram, come parte do seu esforço), rodas de aro 700 (melhores, me disseram, para enfrentar as subidas da Aclimação) e computador de bordo.
Quando eu fui atrás de informações para esta segunda compra, os entendidos me explicaram todas as características e proporções que uma boa bicicleta deveria possuir. Me indicaram as melhores marcas e me avisaram da necessidade premente de andar sempre com uma bomba, uma câmara extra, um jogo de chaves de fenda. Esses mesmos entendidos me disseram que a Caloi não estava com nada e que por menos de dois mil reais não se pode sequer sair de casa. Tinham razão, é claro, ou deviam ter.


Meu problema, portanto, não são os sessenta reais do cabeleireiro, já inclusos os dez reais que me foram tomados pela lavagem. Com a frequência com que eu corto o cabelo, isso equivale a bem menos do que meus gastos com flanelinhas. Não são os muitos reais da bicicleta, mais outros tantos pelas customizações, não é nem o que gastei na garrafinha térmica que logo esqueci no vestiário do trabalho. Meu problema não é financeiro.
E também não é, obviamente, o tempo gasto na internet para aprender a compilar os programas mais chatinhos, que não vêm com instalador. Deus sabe que eu gasto tempo na internet com coisa muito pior.
O problema --- o que me faz ir às barbearias de quinze reais, com suas cadeiras antigas que não sobem quando o cabeleireiro pisa no pedal de alumínio, com o borrifador de água que substitui a lavagem com xampu, com suas revistas ridículas de fofocas dos anos noventa, e o que me faz usar o Ubuntu, no final das contas, ao invés do Fedora, e ainda o que fez com que eu tivesse escolhido levar comigo, para sempre e para onde quer que eu vá, a Vandinha no lugar da Trek 7100 --- é a cobrança que esses lugares de maior glamour impõem sobre a gente.
Neles, não me basta cortar o cabelo; tenho que entender meu cabelo. Entender suas características de oleosidade e curvatura, comprar produtos (pior: usá-los!), evitar que os fios sejam danificados pela excessiva distância temporal entre um corte e outro. Não me basta a disposição de pedalar; tenho que entender as vantagens de uma geometria triangular do quadro em relação à curva, tenho que identificar as razões pelas quais a passagem das marchas deve ser feita de modo a evitar uma relação cruzada, tenho que comentar orgulhoso que meus freios são Shimano e minha luzinha é CatEye.
Em suma: exige-se que eu seja um especialista, um estudioso empenhado e interessado. Mas um especialista em todas as áreas do conhecimento: o terrível especialista-geral, constantemente provocado a emitir opiniões sobre política (e ai de mim se não souber o último ato de brilhantismo do Mujica!), sobre artes (e a vergonha de admitir que até então nunca havia ouvido falar em Luigi Pirandello?), sobre os recentes lançamentos dos videogames, os quadrinhos, a poesia ultra-moderna...


Eu não sou um especialista! Eu nem sei se existe algo como uma “relação cruzada”, se o Slackware é um exemplo adequado do purismo Linux ou se vai hífen em “ultra-moderna”. Eu não sou um especialista nem nas coisas em que eu gostaria de ser especialista, nas coisas --- nas poucas coisas --- que eu estudo com empenho e interesse!
Pode bem ser que evitar os cabeleireiros caros não seja assim o modo mais maduro de lidar com o problema. Pode ser que eu devesse, afinal, andar com a câmara extra, já que pneus furam --- sejam eles de especialistas ou não. Eu não nego as vantagens do conhecimento amplo e irrestrito; pelo contrário, sou um dos mais favoráveis ao aprendizado enquanto fim em si mesmo, e dos maiores opositores à política do “como o Teorema de Pitágoras vai ser útil na minha futura vida de advogado?” pela qual vivem tantos colegas meus.
Podendo, quero saber os segredos dos meus cabelos, quero manobrar meu computador para além de seus limites aparentes, quero saber sobre os melhores objetos caseiros com os quais improvisar um microscópio (caneta-laser e smartphone). Quero entender a dança protagonizada pela Terra e Vênus ao redor do Sol. Quero saber todos os significados que Drummond tem para mim e para você.
No fundo, dirão, talvez seja o medo de ver constatada a minha ignorância o que me aflige. O medo de ser incapaz de diferenciar o conselho honesto do embuste motivado pela perspectiva de vender este ou aquele tônico capilar. Vai ver que durante todo esse tempo eu tenho usado esses cabeleireiros silenciosos (mas que decerto conhecem também os cremes e as loções) e esses vendedores de bicicleta trambiqueiros (mas que não andam por São Paulo em caiçaras) para esconder a inconveniente realidade do mundo: as coisas me são inalcançáveis. Certo?
Errado. Errado, digo eu, eu que defendo o aprendizado enquanto fim, eu que quero aprender sobre penteados e sobre a escala pentatônica e sobre a possibilidade de um ser provido de inteligência artificial possuir uma alma, errado, eu digo, porque o conhecimento deve vir sempre acompanhado da certeza de sua insignificância diante da infinitude de coisas que há para se saber no mundo. Errado justamente porque as coisas nos são inalcançáveis. Nunca as compreenderemos, não em sua plenitude. Pretender compreendê-las todas, como parece ser a moda atual, em que todos precisam especializar-se em todos os assuntos do mundo e em que toda a ignorância é humilhante --- pretender compreendê-las é voltar-se contra a inteligência de Webber e de Aristóteles: o universo à luz da ciência é infinitamente mais alheio ao indivíduo que o era o mundo das explicações religiosas, e, perdidos e sozinhos, não podemos pretender nenhuma certeza além da de nossa própria e inesgotável ignorância. Ou, melhor dizendo, da inesgotável vantagem que os barbeiros de quinze reais levam sobre os de sessenta --- fora a lavagem.


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