Saindo
do Soho (onde paguei por um corte o que normalmente me permitiria
cortar o cabelo umas quatro vezes --- mas essa é outra história),
me peguei novamente em uma situação tremendamente incômoda e que
tem se tornado também tremendamente frequente. Foi assim:
Ainda
lavando o cabelo (pelo que eu tive que pagar dez reais adicionais, o
que não me foi informado de antemão e ainda configura venda casada,
mas isso é outra história), eu expliquei para a moça (a Taiz ---
acho que assim: com Z) que eu queria que meu cabelo ficasse comprido,
mas mais ou menos curto, mas que continuasse crespo, mas não tão
crespo, ou talvez mais crespo, não sei, o que ela achava? Expliquei
que todas as vezes que eu tinha ido ao cabeleireiro até então eu
tinha sido perguntado sobre como queria deixar meu cabelo e que em
cada uma dessas vezes eu respondi uma coisa diferente (“pode
abaixar aqui e raspar do lado”; “só arruma o que tiver fora do
lugar”; “mete a máquina aí!”), mas que todos os cabeleireiros
ignoraram terminantemente minhas respostas vagas e simplesmente
fizeram o que quiseram e no fim o meu cabelo acaba sempre
indistinguível de cada uma das vezes anteriores. E eu expliquei que
por causa disso eu preferia não falar nada, que ela fizesse o que
bem entendesse contanto que meu cabelo acabasse comprido, mas curto e
crespo e diferente das outras vezes todas em que cortei o cabelo.
Ela
fez --- acho que ela fez um bom trabalho. Ficou legal, e tudo o mais,
apesar de muito curto e, francamente, igual a todas as outras vezes
em que eu cortei o cabelo (só que quatro vezes mais caro etc). A
principal diferença em relação à maioria dos lugares que custam
quatro vezes menos é que ela me sugeriu comprar um modelador de
cachos que daria ao meu cabelo a proporção correta de crespice e
armação, enquanto os outros não me recomendam absolutamente nada.
Quatro
anos antes, eu instalei o Ubuntu 10.04 LTS Edition no meu computador.
Meses depois, animado com a possibilidade de não usar Windows Vista
e com a leitura de Neuromancer, instalei o Linux Mint Debian Edition
--- LMDE para os chegados --- no notebook.
A
primeira coisa que eu aprendi sobre o Linux é que, com ele, eu
poderia realizar todas as minhas fantasias mais loucas em termos
computacionais; eu poderia mudar qualquer aspecto da interface,
poderia usar efeitos tridimensionais absolutamente inúteis, desde
que ciente de que eles superariam em muito o que a minha
limitadíssima placa de vídeo Intel Onboard pode fazer, poderia
testar softwares em desenvolvimento etc. A segunda coisa que eu
aprendi foi que para fazer qualquer coisa dessas eu precisaria estar
disposto a deixar de me preocupar com a bomba, isto é, com a
possibilidade de inutilizar completamente meu computador (o que, de
fato, ocorreu algumas vezes) e aprender a amar o Google.
Em
uma das minhas buscas, achei alguém que, em um fórum, tentava
esclarecer uma dúvida que eu compartilhava. As respostas foram as
mais diversas, mas todas envolviam uma série de linhas de comando
que precisariam ser executadas no Terminal.
“Por
que não fazer isso com o mouse?”, perguntou o sujeito do fórum:
outra dúvida que eu compartilhava.
Alguém
--- um veterano de Linux, presumivelmente, um viúvo do Unix, um
entusiasta do Slackware --- respondeu que aquele era o problema das
pessoas que migravam do Windows: queriam tudo mastigado! Somente com
as linhas de comando é que se poderia entender de verdade o
funcionamento de um computador (aparentemente porque existe uma
estranha conexão entre copiar e colar códigos que estranhos postam
em fóruns na internet e o funcionamento do kernell de um sistema
operacional) e qualquer acomodado que quisesse simplesmente clicar
aqui e ali e resolver seus problemas era bem vindo a retirar-se do
mundo open-source e voltar para a ameaça constante dos vírus,
trojans e worms que, na visão do indivíduo, assombram o Windows.
Vários usuários manifestaram sua concordância em relação a essa
afirmação.
Antes
ainda disso, em 2009, eu voltei da Inglaterra entusiasmado com a
ideia de adotar a bicicleta como solução de transporte. Mais do que
isso, porque eu era um idiota, voltei entusiasmado com as bicicletas
sem marcha e com freio contrapedal que eu havia visto na Holanda.
Eu
fui a uma bicicletaria na Sena Madureira (a propaganda não vale
muito, a essa altura, porque o lugar, merecidamente, fechou), falei
mais ou menos o que eu queria e, uma semana depois, recebi a ligação
dizendo que minha caiçara tinha chegado.
Era
uma bicicleta de trezentos e cinquenta reais, pesada como chumbo e
com uma proteção de esponja no guidão. Dias depois, em outra
bicicletaria, me diriam que todos os parafusos tinham vindo mal
apertados. A coroa também não demorou muito a quebrar, o que
permitiu que eu trocasse a original, com sua imagem pré-adolescente
de uma caveira para uma de metal liso, muito mais adulta. Mais tarde,
eu descobrira que a simplicidade do modelo não permitiria que eu
trocasse os pedais.
A
Vandinha (esse é o nome dela, à minha revelia) é a melhor
bicicleta do mundo, mas isso não me impediu de, em 2012, comprar uma
mais moderna, com clipes nos pedais (o que, me disseram, aumenta
muito o rendimento da pedalada), amortecedor na frente (o amortecedor
de trás, me disseram, come parte do seu esforço), rodas de aro 700
(melhores, me disseram, para enfrentar as subidas da Aclimação) e
computador de bordo.
Quando
eu fui atrás de informações para esta segunda compra, os
entendidos me explicaram todas as características e proporções que
uma boa bicicleta deveria possuir. Me indicaram as melhores marcas e
me avisaram da necessidade premente de andar sempre com uma bomba,
uma câmara extra, um jogo de chaves de fenda. Esses mesmos
entendidos me disseram que a Caloi não estava com nada e que por
menos de dois mil reais não se pode sequer sair de casa. Tinham
razão, é claro, ou deviam ter.
Meu
problema, portanto, não são os sessenta reais do cabeleireiro, já
inclusos os dez reais que me foram tomados pela lavagem. Com a
frequência com que eu corto o cabelo, isso equivale a bem menos do
que meus gastos com flanelinhas. Não são os muitos reais da
bicicleta, mais outros tantos pelas customizações, não é nem o
que gastei na garrafinha térmica que logo esqueci no vestiário do
trabalho. Meu problema não é financeiro.
E
também não é, obviamente, o tempo gasto na internet para aprender
a compilar os programas mais chatinhos, que não vêm com instalador.
Deus sabe que eu gasto tempo na internet com coisa muito pior.
O
problema --- o que me faz ir às barbearias de quinze reais, com suas
cadeiras antigas que não sobem quando o cabeleireiro pisa no pedal
de alumínio, com o borrifador de água que substitui a lavagem com
xampu, com suas revistas ridículas de fofocas dos anos noventa, e o
que me faz usar o Ubuntu, no final das contas, ao invés do Fedora, e
ainda o que fez com que eu tivesse escolhido levar comigo, para
sempre e para onde quer que eu vá, a Vandinha no lugar da Trek 7100
--- é a cobrança que esses lugares de maior glamour impõem sobre a
gente.
Neles,
não me basta cortar o cabelo; tenho que entender meu cabelo.
Entender suas características de oleosidade e curvatura, comprar
produtos (pior: usá-los!), evitar que os fios sejam danificados pela
excessiva distância temporal entre um corte e outro. Não me basta a
disposição de pedalar; tenho que entender as vantagens de uma
geometria triangular do quadro em relação à curva, tenho que
identificar as razões pelas quais a passagem das marchas deve ser
feita de modo a evitar uma relação cruzada, tenho que comentar
orgulhoso que meus freios são Shimano e minha luzinha é CatEye.
Em
suma: exige-se que eu seja um especialista, um estudioso empenhado e
interessado. Mas um especialista em todas as áreas do conhecimento:
o terrível especialista-geral, constantemente provocado a emitir
opiniões sobre política (e ai de mim se não souber o último ato
de brilhantismo do Mujica!), sobre artes (e a vergonha de admitir que
até então nunca havia ouvido falar em Luigi Pirandello?), sobre os
recentes lançamentos dos videogames, os quadrinhos, a poesia
ultra-moderna...
Eu
não sou um especialista! Eu nem sei se existe algo como uma “relação
cruzada”, se o Slackware é um exemplo adequado do purismo Linux ou
se vai hífen em “ultra-moderna”. Eu não sou um especialista nem
nas coisas em que eu gostaria de ser especialista, nas coisas --- nas
poucas coisas --- que eu estudo com empenho e interesse!
Pode
bem ser que evitar os cabeleireiros caros não seja assim o modo mais
maduro de lidar com o problema. Pode ser que eu devesse, afinal,
andar com a câmara extra, já que pneus furam --- sejam eles de
especialistas ou não. Eu não nego as vantagens do conhecimento
amplo e irrestrito; pelo contrário, sou um dos mais favoráveis ao
aprendizado enquanto fim em si mesmo, e dos maiores opositores à
política do “como o Teorema de Pitágoras vai ser útil na minha
futura vida de advogado?” pela qual vivem tantos colegas meus.
Podendo,
quero saber os segredos dos meus cabelos, quero manobrar meu
computador para além de seus limites aparentes, quero saber sobre os
melhores objetos caseiros com os quais improvisar um microscópio
(caneta-laser e smartphone). Quero entender a dança protagonizada
pela Terra e Vênus ao redor do Sol. Quero saber todos os
significados que Drummond tem para mim e para você.
No
fundo, dirão, talvez seja o medo de ver constatada a minha
ignorância o que me aflige. O medo de ser incapaz de diferenciar o
conselho honesto do embuste motivado pela perspectiva de vender este
ou aquele tônico capilar. Vai ver que durante todo esse tempo eu
tenho usado esses cabeleireiros silenciosos (mas que decerto conhecem
também os cremes e as loções) e esses vendedores de bicicleta
trambiqueiros (mas que não andam por São Paulo em caiçaras) para
esconder a inconveniente realidade do mundo: as coisas me são
inalcançáveis. Certo?
Errado.
Errado, digo eu, eu que defendo o aprendizado enquanto fim, eu que
quero aprender sobre penteados e sobre a escala pentatônica e sobre
a possibilidade de um ser provido de inteligência artificial possuir
uma alma, errado, eu digo, porque o conhecimento deve vir sempre
acompanhado da certeza de sua insignificância diante da infinitude
de coisas que há para se saber no mundo. Errado justamente porque as
coisas nos são inalcançáveis. Nunca as compreenderemos, não em
sua plenitude. Pretender compreendê-las todas, como parece ser a
moda atual, em que todos precisam especializar-se em todos os
assuntos do mundo e em que toda a ignorância é humilhante ---
pretender compreendê-las é voltar-se contra a inteligência de
Webber e de Aristóteles: o universo à luz da ciência é
infinitamente mais alheio ao indivíduo que o era o mundo das
explicações religiosas, e, perdidos e sozinhos, não podemos
pretender nenhuma certeza além da de nossa própria e inesgotável
ignorância. Ou, melhor dizendo, da inesgotável vantagem que os
barbeiros de quinze reais levam sobre os de sessenta --- fora a
lavagem.