Foram, portanto, a consciência do distante e a inconsciência, também, que escondem essas canções todas, todas elas do exílio, todas elas sobre a palmeira e o sabiá e nunca sobre aquilo que doía, porque o que dói, agora, é essa falta infinita da palmeira e do sabiá, minha primeira visita ao sentir São Paulo, ainda que antes, muito antes eu já vivesse um saber a cidade que devo em grande parte ao namorar uma arquiteta ou urbanista potencial, alguém que olhava para os prédios e me dizia mais do que gosto ou não gosto. Mas saber não é sentir e foi só quando eu primeiro vi no céu a falta do cruzeiro, só quando eu primeiro sonhei numa língua que não era minha pátria e quando me faltaram o pão francês e a mortadela (esses dois que nem nossos são!) e um suco de laranja que prestasse, foi só então que eu senti além de saber, muito embora sentisse pouco e soubesse menos.
Foi lá, também, que eu aprendi a sentir uma cidade (assim, genericamente) ou a me sentir parte de uma cidade, que são conceitos parecidos, acho, embora nitidamente diferentes. E foi por isso que no final de 2009, quando eu voltei para casa finalmente em um dia chuvoso que não podia ser mais propício e fui a um restaurante com meu pai e meu irmão, embora eu não me lembre se era uma pizzaria ou um restaurante japonês e minha memória cisme em fingir que era uma lanchonete, foi por isso que neste dia específico eu já tinha o plano de contrariar toda a minha saudade e todo o meu ufanismo e incorporar à minha recém retomada vida paulistana o elemento máximo de minha vida pregressa inglesa, ou seja, uma bicicleta.
O plano era ousado, para dizer o mínimo: envolvia não apenas desembolsar uma quantia relevante em um objeto que aumentaria meus riscos diários consideravelmente, mas também fazê-lo insensatamente, investindo não em um equipamento urbano, mas em uma bicicleta sem marchas ou freio nas mãos, desenhada para andar na praia ou nos asfaltos planos e bem cuidados da Europa que eu fingia negar. Dava, assim, a impressão de ser como aqueles mesmos arquitetos que, trazendo as idéias de fora, deixam nossa cidade tão pouco nossa ou como, sei lá, a Cow Parade de que tanto reclamam aqueles que clamam por um intervencionismo urbano mais paulistano, esquecendo-se, talvez, de que São Paulo é farta em sua própria linguagem de rua, nas pontas de suas pixações ou no preto de seus grafites e de que é absolutamente coerente ao espírito de Sampa trazer de fora tudo quanto pudermos, sem maiores pudores.
Seja como for, a idéia tinha algumas justificativas à época e há outras que eu poderia citar agora sem grandes receios, apesar de claramente terem sido criadas a posteriori, para explicar a decisão somente depois de tomada. Em primeiro lugar, no que diz respeito à inadequação de uma bicicleta caiçara, pesada e de guidão alto às ladeiras e ao asfalto truncado de nossas ruas, eu me defendia, então, com a desculpa prática de que eu não pretendia me aventurar para além das fronteiras do meu bairro e que, portanto, a questão era de menor relevância, devendo prevalecer o conforto maior que uma bicicleta dessas propicia nos passeios breves, em que a coluna ereta nos cai bem (embora eu posteriormente fosse descobrir que esta postura sentada seja, na verdade, danosa à coluna). Hoje, porém, todos podem ver que eu faço — e a verdade é que eu já então sabia que faria — percursos longos de dez, quinze quilômetros, às vezes tendo que descer uma via rápida como a Sena Madureira (rápida para uma bicicleta, vejam) ou tendo que subir o Everest que é uma Bela Cintra ou uma Brigadeiro Luís Antônio, tendo que brigar com os ônibus da Paulista, Vergueiro ou Joaquim Floriano, tendo que me apertar entre os carros da Lins e da Francisco Cruz, enfim, tendo que fazer tudo aquilo que uma bicicleta caiçara sem marcha e com freios nos pés não nasceu para fazer. Aos que levantam estes argumentos, eu talvez não tivesse resposta na época, mas agora eu diria que comprar uma bicicleta nunca foi uma questão de adequação e que, se eu quisesse andar em São Paulo com um veículo para o qual São Paulo foi feita, eu não teria opção ao carro, e que andar de bicicleta é tanto uma decisão pessoal quanto uma forma de ativismo, porque não se anda de bicicleta em uma cidade como São Paulo sem se estar protestando contra nosso trânsito, nossa visão motorizada de como o mundo deve ser etc. Assim, uma bicicleta inadequada me parece tão propícia quanto qualquer outra, se não for mais, me forçando, a cada buraco no asfalto, a cada trecho em que tenho que dividir a faixa com motoristas ignorantes, a lembrar que estou em São Paulo e que são esses alguns dos problemas da minha cidade. Mas também não é minha intensão fazer panfletismo aqui e é por isso que corro logo para minha última consideração a respeito da minha escolha cíclica, ou seja, a opção por uma bicicleta com freio no pé, o freio “contra pedal”, ao invés dos tradicionais v-brakes, na mão, que são o que mais se vê na bicicletas que teimam em circular por nossas vias hostis. Essa é, na verdade, a questão mais relevante dentre todas essas observações tediosas sobre bicicletas, porque ela envolve o entendimento da diferença principal entre andar de bicicleta e andar de carro, ao menos do ponto de vista desse texto, isto é, de sentir a cidade: andar de bicicleta é como andar a pé (só que mais rápido), é poder fazer qualquer caminho, poder parar e olhar uma árvore florida etc, ao contrário de um carro em que se entra e se sai do mundo; uma bicicleta é uma extensão de você, não algo externo como um carro e, da mesma forma, estar em uma bicicleta é como não estar, é seu corpo que roça os carros, quando a manobra não é rápida o bastante, é em seu peito que bate o vento e é sua cara que se dá a tapa.
E é mais ou menos por isso que comprar uma bicicleta foi meu segundo avanço no meu processo de internalização da cidade em mim ou de mim na cidade ou internacionalização nenhuma de nada em lugar nenhum, somente uma sensação de sentir que, francamente, já me basta.
Queria fotos da tal magrela.
ResponderExcluirEm tempo: isso tudo sabe a megalopo(lanco)lia, coisa de ser urbano: bonito e esfumaçado.