20081225

O Espelho

Voltou então a ler o romance. Deixara-o de lado havia vários dias, por causa de uns devaneios, que não permitiam que ele se concentrasse no livro. Sentou-se em sua poltrona, dando as costas para a janela; não queria nada que pudesse desconcentrá-lo, fazê-lo parar de ler. Abriu o livro. O quase silêncio e a suave brisa que entrava pela janela logo fizeram a narrativa envolvê-lo. Entregava-se às aspas e reticências; não fosse um ou outro barulho, ou uma ajeitada que ora dava na almofada, logo esqueceria que estava, na verdade, lendo. Acompanhava os pensamentos de um jovem perturbado, suas caminhadas pelas ruas de –burgo, seus tropeços. O jovem tinha uma idéia fixa na cabeça, uma obsessão; não sabia, porém, como realizá-la. Fechava-se por horas a fio em seu quarto, folheando algum jornal ou panfleto; olhava para o espelho, buscando uma inspiração, uma oportunidade que fosse; havia um livro sobre uma cômoda, um romance, esquecido, que dera a ele a obsessão. Abria a janela; um leve vento no rosto o ajudava de quando em quando; dessa vez precisava, porém, de uma rajada. Saía de sua casa, sem ao menos trancá-la; apenas encostava a porta. Punha-se a perambular pelas ruas de –burgo, concentrado na sua obsessão; de algum jeito ele conseguiria sua inspiração. Cruzava os cruzamentos, caminhava pelos caminhos, atravessava as travessas, até que chegou a um mirante sobre o golfo, nesses dias, agitado. Era isso! A inspiração, afinal! Correu para sua casa, extático. Trancou a porta ao entrar, correu para a cômoda sobre a qual estava o livro, abriu a gaveta, tirou o revólver, conferiu o número de balas; havia duas, mas apenas uma bastava.


Precipitou-se para a rua, mas foi detido pelo espelho; olhou para aquela imagem, sua imagem, obsessiva, segurando o revólver. Assustou-se; algo estava errado, algo tinha que estar errado. Desviou os olhos do espelho e começou a refletir; talvez ele não tivesse compreendido sua própria idéia, sua própria obsessão. Abriu a gaveta da cômoda e guardou o revólver. Olhou para o livro, o livro que lhe dera a idéia, mas que lhe tirara o chão; sim, ele não compreendera a idéia; quem sabe ela se completaria nos capítulos que restavam. Voltou então a ler o romance.

3 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. legal, a pitada cíclica não ficou muito clara, mas é sempre bom ler coisas introspectivas sobre doppelgängers

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  3. Eu tinha achado que era Crime e Castigo, o livro, no começo.

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