Eu não tinha dormido, também não tava com sono. Eu tava pissa. Mesmo assim, levantei a cabeça quando ele chegou e ri, claro. Ele passou a mão no meu cabelo, passou reto. Eu ali no chão, só olhando pra porta, esperando abrir, torcendo pra ficar fechada. Abriu. Fazia quarenta minutos, sei lá, que eu tava olhando e a porta abriu e tinha um cara, lá, segurando a menina. Não devia ter nem vinte anos.
Ela tinha uma coleira no pescoço e estava com a boca cortada, mas, afora isso, estava perfeita: a pele, o rosto, o cabelo. Ele foi até lá, pegou a menina pelo braço — não pela coleira —, discutiu um pouco com o outro cara, voltou pra dentro. Ele. Tem gente que gosta de termos como “dono”, “mestre”, “senhor”, mas Ele sempre quis que eu o chamasse de Ele. Acho que porque a muita ornamentação faz parecer que é exagerado, brincadeira, fingimento. Ela vai aprender, também.
Então ela entrou e não estava assustada, não estava com medo, estava feliz. Ela olhava pra Ele com os olhos meiofechados, com uma cara de quase choro, mas quando Ele se virou e ela me encarou, foi quase arrogante, superior e não só por ela estar de pé e eu no chão, mas sim por saber que ela logo ia vir pro chão, também, que não era mais meu. Eu sei que ela pensou isso, que ela achava que eu não dei conta, que tava velha e que ela ia tomar meu lugar. Eu sei porque é isso o que eu pensava enquanto olhava pra ela, enquanto olhava pra Ele, o tempo todo. Eu tava pissa.
Depois, Ele saiu e ficamos nós e, como Ele trancou a casa toda, estávamos só no pátio. Ela não falava nada, mas quando nossos olhos cruzavam, ela ria baixinho
Quando Ele chegou, a gente tava nessa. Ela, sorrisinho, eu fingindo que nem ligava e aí ouvimos o barulho na porta, ouvimos Ele entrando na casa, ligando a TV. Depois de um tempo, Ele abriu a porta do quintal, disse vem cá e foi pra ela e ela foi e eu fiquei. Dava pra ouvir os dois. Dava pra imaginar.
Seria ridículo alguém pensar que eu tava com ciúmes. Mil, não, mais vezes eu vi Ele fazendo sexo com outras mulheres, às vezes eu participando, às vezes eu ajudando, às vezes eu assim, do lado de fora. Mil vezes a gente foi em festas ou em bares e Ele me pedia pra encontrar alguém, para falar com ela, levar pra Ele. Já fiquei de quatro, servindo de apoio para as champanhes de outras mulheres, já entrei no quarto só no final pra pegar a camisinha usada ou pra lamber a porra dele escorrendo de alguém.
É escroto escrever assim, sei lá, degradante, mas fazer não é. Eu me lembro na primeira vez que eu li sobre sadomasô. Alguém me disse que aquilo era machista e eu me lembro do quanto essa ideia me pareceu absurda. Quero dizer, o machismo tiraria toda a graça da coisa, né? Se a pessoa (e pode ser um homem ou pode ser uma mulher) achar que a outra é inferior, que está abaixo de si, que tem a obrigação de se submeter, então qual a graça da coisa toda? Ou então se o contrário, se eu achasse que tinha o dever de ser submissa. Qual o valor de tudo o que eu faço, então? Mas não tenho e é por isso que não é escroto nem degradante.
Só que se não é ciúmes, sei lá o que é, porque me deixou inteira doída, me esquentou as orelhas, me fez morder o lábio com força. Me fez encostar na janela e tentar ver alguma coisa, tentar apertar meus olhos pelo vão, tentar fazer ela ter um ataque cardíaco.
Mas ela não teve e continuou assim. Aquela semana toda, aquele mês, sempre ela que ia e eu que ficava. No começo, nem juntas a gente ficava, porque ela dormia lá dentro. No primeiro dia em que a gente ficou junto depois disso, eu esperei Ele sair e pulei em cima dela, arranquei os cabelos, mordi o rosto. Ela gritou, correu prum canto e nem teve coragem de chegar perto de mim, mas quando Ele voltou, me amarrou e me bateu com o cinto, até sangrar, o que, claro, não me impediu de fazer igual no dia seguinte e no outro e no outro.
Sozinha eu nunca ia perceber que era aquilo, bem o que me matava, que me fazia tão bem, que me dava de verdade o sofrimento que eu sempre busquei de mentira e que me confirmava o amor que eu sempre achei saber que sentia. Sozinha eu nunca ia saber que ser preterida era uma forma de predileção porque meu sofrimento era intencional e calculado e cada dia em que eu ficava para fora era um dia em que eu era prioritária. Isso provava que Ele me amava e se me amava, sofria também pela distância forçada, pelo ressentimento nos meus olhos que sangram mais que a chibata. No fim das contas somos nós os covardes, os sádicos, porque a dor machuca muito mais a quem lhe causa.
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