20090211

Ímã de geladeira

A fim de provar sua insignificância e desimportância no mundo, Pedro converteu-se em um imã de geladeira. Supérflua seria sua vida a partir de então, e se mesmo assim o estoque de salgadinhos em seu armário continuasse se renovando, estaria provado que sua existência era completamente desnecessária.
A loja de conversão assemelhava-se a um estúdio de tatuagens, mas o atendente, em vez de robusto, careca e possivelmente diabético, era um homem magricela (descontada uma pequena pança), com traços armênios e léxico abrangente.
Tudo foi feito rapidamente: Pedro despediu-se de seu primo que o acompanhara, cantou “Mestre Jonas” uma última vez e enfrentou seu destino auto-traçado; o atendente massageou as coxas do rapaz, pediu-lhe que assoasse o nariz (‘Para que não haja acúmulo de fluidos durante a metamorfose!’), deitou-o e, enquanto urrava e estapeava o rosto de Pedro – que já ganhava traços de arrependimento – parecia extasiado; três minutos depois, a percepção de mundo do rapaz já se alterara significativamente: o que antes era roxo, agora era cor de repolho; o púrpura, magenta; lápis-lazúli, preto; todo o trâmite da transformação durou dezoito minutos, o suficiente para que Renato, primo de Pedro, se arrependesse de tê-lo acompanhado, mas o que estava feito, estava feito, e seu primo tornaria-se um imã de geladeira; o último detalhe acertado foi o formato; o atendente apresentou uma cartela com treze modelos diferentes, nenhum dos quais agradou Pedro, que resolveu confiar nos dotes artísticos do atendente, pedindo-lhe que moldasse a forma-futura diretamente em seu corpo, para que pudesse sentir mais diretamente suas entranhas remoendo-se, na metamorfose em massa, sob a pressão dos cotovelos (‘Com eles é mais fácil fazer reentrâncias’, diria depois o atendente) e unhas do magricela; retiradas as partes desnecessárias, restando apenas o equivalente ao tronco desfalcado de Pedro – sem mais pernas, braços, falo, orelhas (mas o aparelho auditivo interno lá permaneceria), mamilos -, ele já se mostrava significativamente menor. Faltava ainda reduzir proporcionalmente sua escala. O atendente pediu que ele recitasse versos quaisquer ininterruptamente, para que o processo fosse menos doloroso. “Moloch moloch moloch moloch moloch moloch moloch moloch moloch moloch moloch moloch moloch moloch moloch moloch blabla moloch moloch blabla moloch moloch moloch moloch blablablabla moloch moloch” foi tudo que veio à cabeça do cotoco, enquanto o atendente cuspia vigorosamente sobre todas suas extremidades, ao mesmo tempo que espremia – como uma espinha – os lados de PósPedro, que ficava menor e menor a cada instante. O procedimento aconteceu entre os minutos treze e quinze da transformação. Os três que se seguiram foram ocupados com a modelagem em si. Por odiar o rococó e os “ismos”, o atendente decidiu fazer de Cotoco um exemplo de op art. Suas mãos e cotovelos deslizavam com facilidade dado o suor gotejante e salgadinho que escorria do corpo retalhado de Pedro, e ao adentrar o penúltimo minuto da metamorfose já era possível perceber linhas e traços perpendiculares cobrindo o peitoral do semímã, que começava a empalidecer e ganhar uma intrincada conotação de zebra. Os dedos rugosos sendo repetidamente encostados nas órbitas fizeram as pupilas se planificarem e caírem, rodando a seu bel prazer nos olhos, podendo-se girá-lo (o cotoco suadouro) graus a fio sem que a imagem percebida se alterasse significativamente (uma montanha-russa visual e estável, hurra!’, Pedro-ímã pensava), e pra quê tamanha bocarra? Só um orificiozinho de comer e descomer e pelo qual fosse possível dizer ‘Renova-se!’ (em relação ao estoque de comidas nos armários de Pedro), para logo depois prosseguir-se com o aniquilamento do íma, só isso seria suficiente. A textura gelatinosa dos lábios enternecia o atendente que, para guardá-las, colou-as com cuspe nas bochechas do cotoco-quase-bolota. Desnecessário dizer que as gelatininhas adquiriram tons de cinza. Para finalizar o trabalho, o artesão deu um tapa final e estava feito o ímã.

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