José sempre soube que ver as coisas era questão de escolha; obviamente pode-se desviar o olhar mecanicamente, com torções do pescoço ou movimentos de corpo inteiro e até mesmo fechares de pálpebras, mas esquece-se às vezes que a visão é um processo cognitivo e, portanto, passa necessariamente por uma etapa de reconhecimento semântico - a imagem "bruta" absorvida é submetida a uma transformação em significado. Esse processo é, sabia José, totalmente voluntário e controlável.
Foi assim que José não viu a morte - com a combinação ágil de piscadelas de ginasta e uma espécie de autismo fabricado, desfez o que se fazia à sua frente: um corpo de mulher desabando como tijolo em nada, já sem sentido. Dizer que continuou andando daria um tom maior à dramaticidade, mas é mentira: nem mesmo estava em movimento quando aconteceu, os pés plantados no chão como quem vê a lua com telescópio, um suíngue lentíssimo balançando-lhe os quadris enquanto admirava o que quer que fosse que caía. E então -- nada.
Gabriel lhe perguntou desesperado, bêbado talvez, afinal o que acontecia ou acontecera - mais cinco ou seis ao redor, círculo do telefone-fogueira, queriam saber, aflitos. José não o via, não é preciso falar, e a voz de Gabriel era quase um slogan alienígena surgindo metálica. Disse apenas que não sabia, que não tinha como saber, e desligou.
Viu-se no espelho de relance, distraído, e reconheceu sangue nos seus sapatos, antes que pudesse evitar. Fechou os olhos mas não foi suficiente
[apenas um adendo de qualidade duvidosa
e veneno histórico:
josé era o filho do neto do longínquo descendente
de um famoso bandeirante cujo nome já se perdeu
homem de grande bravura
de grande corpo
de longa espada.
desgraçado pelo sexo
(de uma nativa)
atocaiou-se em minas gerais
em uma gruta
em uma cachoeira
tornou-se bruxo
renascido Hermes
e viveu de cogumelos
até se tornar constelação]
pois o que estava visto estava visto, sem negociação. Naquele bar, quase gentrificado a ponto de se tornar uma padaria familiar, não havia ninguém que se importaria, creu ele. Comprou um café, uma cachaça, uma cerveja e uma coca-cola e bebeu-os nessa ordem, o mais rápido possível. Ao fim, tão enebriado quanto sóbrio, dirigiu-se ao banheiro e lá se trancou.
José também sabia outra coisa que esquecemos: morrer. Morreu, então.
dentro de uma estrela que na verdade é fria como todas as estrelas porque estão no espaço dentro de uma sala mobiliada como uma mesa de bilhar dentro de um armário de madeira de lei composto por mozart está josé de olhos abertos vendo ela dançar sobre desenhos de giz que talvez sejam o retrato de um ex-general sem nome e a dança é incrivelmente bonita e lhe faltam palavras
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Haha, ops! Ia comentar no meu poste por engano.
ResponderExcluirEnfim; curti o lance do bandeirante, mas não tanto o final do final do josé. Acho que tem futuro.
Eu acho que teria sido mais espero tomar a cerveja antes de tudo, pra aproveitar enquanto estivesse gelada. O café até se justifica tomar antes se quisesse-o bem quente, mas a cachaça?
ResponderExcluirTambém gostei do adendo bandeirantino.