20111202

O gato amarelo

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Certo dia sobre o topo dos telhados da vizinhança surgiu um miado. Depois viram o gato amarelo que vez ou outra aparecia olhando meio de soslaio para as idosas do condomínio. Ele miou com constância heróica por dias e dias. No primeiro dia o máximo que ocorreu foi um comentário entre o almoço e a louça, gato é manhoso. No segundo dia, sob o banho de sol coletivo das senhoras entre um horizonte e outro uma delas grifou, como fazem os filósofos nos pontos-chave do texto, o vizinho não tem gato, tem? A negativa apenas causou um certo alerta, talvez um corpo ou outro precisou se ajeitar na cadeira reclinável. Mas no terceiro dia, na visita do netinho, a miaria pareceu demais insistente, ainda levando em conta a chateação do netinho que não parava de miar junto, tem algo errado com esse gato.

–– Será fome?
–– Acho que ele tá com medo de pular, subiu e não consegue mais descer, dizendo sob o leve riso da piedade.
–– Ele tá aí no telhado faz tempo, fico ouvindo ele miar até de madrugada. Quando ele anda pelo telhado parece uma sirene que vai e volta. Acho que deve ter perdido o filhote.
–– Tem escada aí?
–– Tem.
–– Chama o seu Giovani pra subir lá e tirar o coitado de lá.

O seu Giovani que era velho, mas homem, precisou carregar a escada até o muro oposto do quintal que era alto a ponto de tornar o miado uma assombração. A escada, no último momento, era curta demais, e seu Giovani que não gostava de se esforçar à toa tentou puxar a mangueira dágua pra espantar o gato amarelo –– pois tinha certo preconceito de gatos, pois pareciam estar sempre mentindo –– mas as senhoras o impediram com um leve farfalhar de broncas que levavam em conta o estereótipo do homem selvagem.

Pois não podendo fazer nada além de rezar, as senhoras se comoveram tanto com o fato que durante a semana não conseguiam parar de pensar no gato amarelo –– vamos ter que adotar ele –– a ponto da casa virar uma espécie de Meca da especulação onde se bebia suco de uva e às vezes caipirinhas dependendo do dia da semana e da combinação dos remédios.

Na virada da manhã para a tarde, quando todas as senhoras estavam desprevenidas diante dos noticiários digestivos o gato amarelo foi embora. Quando foram digerir no quintal uma delas resolveu começar alguma coisa, que tarde gostosa, tranquila. A palavra tranquila desencadeou uma espécie de mordida na torrada proustiana e uma delas apenas verbalizou o que todas sentiam simultaneamente, o gato foi embora. A comida revirou nos estômagos na cadeira de maneira que o mesmo pensamento, assim como o mesmo almoço, era absorvido em seus sentidos. Que gato ingrato, todas pensaram com um certo rancor que lhes parecia completamente justificável.


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Um comentário:

  1. fiquei feliz de ter lido!
    coisa chique, sim senhor.

    não cabe a tag schrödinger?

    enfim: ciao, miao giallo.

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