Quando se fala em arte, uma observação relevante diz respeito à dualidade que sempre se observa entre o artista e o público. De fato, diz-se sempre que a arte só se completa com a ação deste, e não somente com a daquele, e isso se dá justamente porque o trabalho artístico pressupõe algum esforço de interpretação; entendimento que dê ao trabalho um sentido — sendo este nem sempre igual ao que o próprio artista previu. Note que esse entendimento está intimamente relacionado à idéia de arte enquanto expressão. No entanto, corre-se o risco de dar demasiada importância à subjetividade interpretativa do receptor, ignorando-se a igual necessidade do esforço do artista. Ora, ainda que não exista arte sem a recepção, não se pode conceber a arte somente por via dela; não se pode obter um trabalho artístico por meio somente do significado apreendido, sem que tenha havido, em algum momento, a intenção de que se expresse.
Por isso, não pode existir arte sem a existência de um trabalho consciente de expressão e de atribuição de significação, ou seja: a arte é inerente à atividade racional, por mais que a arte em si pressuponha, muitas vezes, muito mais a emoção do que o intelecto. Para ilustrar esse conceito, recorreremos novamente ao exemplo de Duchamp e sua Fonte. Enquanto o objetivo do dadaísmo era justamente o de retirar a racionalidade da arte; enquanto o penico em forma de fonte era justamente uma crítica ao purismo do intelecto, não é difícil apreender o exercício racional que se superpõe ao processo criativo; é clara a idéia pautada na razão e que sustenta justamente a irracionalidade artística. Isso não é uma incoerência do dadaísmo e, pelo contrário, é justamente o que o torna um movimento artístico, e lhe permite criticar qualquer outra forma de arte.
Se, por exemplo, um animal causar acidentalmente algo que possa ser visto como expressão de alguma idéia, não será ele um artista, pois nunca pretendeu fazer-se entender, e ainda que uma pessoa interprete o resultado dessa ação aleatória de forma a atribuir-lhe sentido, não haveria, em princípio, a figura do artista, essencial à atividade artística. No entanto, ao expor o objeto como tendo significação, essa pessoa estará agindo justamente da maneira que um artista age quando dá à madeira ou à tela um sentido. Assim, ainda que seja o animal o responsável pela execução da atividade que levou à criação do objeto — e indubitavelmente ele é o criador do objeto enquanto elemento físico —, é o artista quem atribui um significado para tal objeto e, portanto, torna-o viável de ser tratado como obra de arte. Há, portanto, uma distinção clara entre o objeto material — uma pegada suja de terra sobre o rosto de alguém em um pôster, por exemplo — e o imaterial — a idéia da crítica irônica a uma personalidade, por exemplo.
O essencial à criação da propriedade imaterial é, portanto, a concepção da idéia e sua expressão, e não a forma como a idéia se expressa, embora esta seja essencial àquelas.
Entendemos, por essa razão, que o esforço artístico deve ser sempre baseado na racionalização que gera a idéia, e que a criação da obra deve, portanto, se dar somente com o esforço intelectual, sendo todo o restante mera conseqüência desse esforço ou, mais precisamente, simplesmente a exteriorização da criação artística, e não a criação em si mesma. Nesse mesmo sentido, embora entendamos que a forma possa ser parte essencial da idéia — caso, por exemplo, da poesia que tem na rima e na métrica elementos cruciais de seu ser —, questionamos a relação direta entre a obra e a forma em que se apresenta. Conforme se costuma dizer, a obra é criada em dois momentos distintos, quais sejam a atribuição de significado realizada pelo artista, através do esforço criativo — e não manual — e a atribuição de significado realizada pelo receptor, através do esforço interpretativo. São duas ações que ocorrem somente no intelecto, de forma que uma nova obra artística se cria quando um intelecto concebe uma nova expressão e outro intelecto percebe um novo significado.
Por isso, temos como claro que o conjunto de letras e a ordem em que, expostas, elas formam Romeu e Julieta, diferem inteiramente da obra de Shakespeare, porque essa está no conjunto de idéias, sentimentos e valores expressados pela obra — ainda que, sem aquela exata ordem de letras, tais idéias, sentimentos e valores jamais poderiam ser expressos. Por isso, quem se utiliza de trechos shakespearianos na criação de obras novas — obras derivadas —, desde que consiga criar uma nova idéia e expressar novos valores e sentimentos, não deve ser visto como um violador da obra do mestre inglês, mas sim como alguém que soube criar algo novo. A diferença está, como vimos, no fato de que, ao usar os trechos de Shakespeare, o novo artista deverá ter realizado uma atribuição diferente de significação, que será perceptível ao público que, por sua vez, fará uma interpretação diferente da que faria para o amor proibido da obra original. Não importa, nesse sentido, a grandeza do pensamento novo em comparação ao que lhe serviu de base.
Importante mesmo é que não se tema o exercício da criatividade no campo das idéias, por medo de violações no campo da forma. O respeito à criação alheia não deve impedir o desenvolvimento de obras novas, que tragam novas idéias e que resultem de um novo e distinto exercício de consciência e racionalidade, que levem a uma nova forma de expressão. Por isso, defendo: racionalize o irracionalizável, conceitue o inconcebível. E não se detenha se, para isso, for preciso repensar o que já é, para chegar ao que nunca foi.
Recicle!
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Que coisa fofa! (e de escrita mui desenvolta, meus parabéns).
ResponderExcluirTambém adorei a referência à novela do macaco.
=)
Merci.
ResponderExcluirAchei isso no PC ontem, enquanto procurava outra coisa (que não encontrei). Fiquei coçando pra postar.
Eu concordo com a mensagem final, sim, mas tenho que discordar um bocado das obras de arte como resultado de um "esforço racional", enfim. SEI LÁ:
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